segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Quando as hashtags vão às ruas

Uma análise do reflexo das manifestações de junho de 2013 na sociedade e no jornalismo

Ana Maria Ghizzo


Cidade de Florianópolis, junho de 2013. Trinta mil pessoas nas ruas, 59.980 pernas, 338 baseados enrolados, 1.900.222.234.102 pingos de água rolaram do céu, 1.528 capas de chuva foram vendidas, o que girou R$ 7.640,00 na economia varejista. Precisamente 3.589 cartazes foram pintados e 125 slogans criados, 12 contendo erros de português gravíssimos. Vinte mil pessoas subiram a Ponte Colombo Salles, 10.258 resolveram ir até o final e retornaram à Ilha atravessando também a Pedro Ivo, cinco mil assistiram tudo da estação rodoviária. Por ordem de um jogral, as catracas foram puladas 59 vezes ao som de Quem não pula quer tarifa! Quem não pula quer tarifa!

Clarividência (Auto Retrato)” (1936), por René Magritte (1898-1967)

Feito o exercício do mestre Gay Talese, atrevo-me a imitar sua artimanha em manipular dados um tanto quanto inusitados. Capas de chuva, baseados e cartazes compõem uma outra ótica, abrindo os olhos para uma formatação mais bizarra da realidade. Mas, e agora? Que rumo esse texto deve tomar para fugir da mesmice das coberturas cotidianas sem ser pretensioso? Como sobressair às capas dos jornalões? Como despistar o foco dos detalhes pontuais do movimento Acorda Brasil?


Durante as manifestações, a opinião popular dividiu-se em dois grupos: os descrentes na mudança e os esperançosos, formado em grande parte pelos que saíram às ruas com um propósito. O primeiro grupo tentou de todas as formas desestabilizar o segundo, e nesse processo seu principal argumento foi a multiplicidade de quereres dos demais. Clamavam por educação, saúde e igualdade. Também exigiam salários melhores e uma sociedade menos sexista. Tudo isso antes mesmo do café da manhã. Com a mesma voracidade que exerce sobre as fatias de pão que passam da hora na torradeira, o tempo também passou para os protestos. E o grito dos direitos hoje ecoa abafado nas ruas.

Jaz na lembrança o mar de protestantes, exibicionistas, faceiros, intelectuais, coxinhas e sertanejos universitários que varreram as calçadas dos tantos prédios que ainda permanecem habitados por famílias, cachorro, gato, galinha. De cada janelinha e cada sacada que outrora piscou as luzes para incentivar a multidão passante, hoje ainda saem jovens filhos. São frutos de uma educação sexista e de uma formação altamente influenciada pelo consumismo e pelo mercado de trabalho. A ideia de que a felicidade é um pacote fechado: crescer, estudar, trabalhar, casar, ter filhos, envelhecer vende mais do que chuchu na feira. A felicidade é projetada num constante infinitivo. E, tempos verbais à parte, a juventude tem, historicamente, o papel de questionar e modificar os moldes da sociedade em que vive, quer exerça esse direito-dever ou não.

Considerando que as coisas podem não mudar tanto com o passar dos anos, o psicólogo Guilherme Guimbala afirma: “O que realmente muda é o contexto sócio-histórico em que se vive o período da juventude e não as características psicológicas. Estas permanecem as mesmas que eu vivi na minha adolescência e pelas quais todos passamos indistintamente”. Levando isso em conta, as etapas da juventude não variam tanto de geração para geração. Todos questionamos, nos rebelamos, e procuramos a todo custo encontrar, nessa fase da vida mais do que nunca, algo, ou alguém, para nos identificarmos. Sendo assim, tudo permanece como cantou Elis Regina, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais.

Relembrando 1968, que precedeu o AI-5 no Brasil, e 1992, que acabou com a queda do presidente Collor, o escritor Amilcar Neves ressalta com convicção militante: “Foram 24 anos, de 1968 a 1992, e, agora, temos 2013 acontecendo no Brasil todo. Acho importante que a gente jamais abandone nossos ideais de juventude”.

Em junho, o jovem se manifestou. Sustentadas por corpos bem trajados e mascarados, as gargantas extravasaram slogans e frases incansavelmente hashtagueadas – com o perdão do atropelo linguístico - nas redes sociais. Era o perfeito momento para a imprensa noticiar, com seu ar pomposo, o que estava ocorrendo. Aliás, ocorrendo não, acontecendo: com as mídias ninja saindo a campo, tratava-se de reportar o que estava acontecendo em um tempo mais real do que nunca. Acontecimentos a todo minuto nos tão falados desfiles fora de época. Nesse mar de mil emoções, retumbou o grito entalado, ou enlatado, das jovens gargantas. E a imprensa já não podia mais esconder: os vândalos, ou manifestantes, conquistaram as manchetes à força, voz, e solas de sapato.

No jornalismo diário, os adjetivos são facilmente dispensáveis, quase extintos. As manchetes da grande mídia florianopolitana nunca deram muita lenha para as manifestações do Movimento Passe Livre. A história era sempre a mesma: estudantes, desocupados, vândalos que atrapalhavam o trânsito e impediam o trabalhador cansado (e explorado) de voltar para casa no fim do dia. A polêmica era certa, e a violência também. Com os protestos do meio do ano, a história foi outra, não só na terra de Floriano, como em todo o país. Deu até no Jornal Nacional que os manifestantes e os vândalos não pertenciam ao mesmo grupo, tampouco tinham as mesmas prioridades e interesses. Atentos a qualquer indício de violência, ouvia-se um constante “isso não me representa” ecoar, em peso, na voz dos sem partido.

Ao mesmo tempo, as lentes das câmeras transmitiam tudo. Diretamente das ruas para os sofás, deixando boquiabertas aquelas mesmas famílias que no início deste texto criaram seus filhos e piscaram luzes. A telinha também inspirou aqueles mesmos jovens filhos a despencarem do pé da sua individualidade e a caírem diretamente na multidão das ruas. A estudante de Ciências Sociais, Caroline Bellaguarda, observou que “diante dessa inquietude da juventude, o debate político voltou a ser mais palpável, voltou a ser mais concreto”.

A medida que a multidão chamava “vem pra rua, vem” muita gente, de fato, foi. Da patricinha ao maconheiro, tinha gente de todo lugar. De repente verde e amarelo eram as cores da moda, e protestar era cult. As ruas viraram um mar de umbigos e interesses, e a essência do protesto nadou, nadou e morreu na praia. Os jornalistas, que não são bobos nem nada, agarraram-se aos seus botes salva-vidas e boiaram até as manchetes do dia seguinte, enrolando seus peixes com os resquícios do patriotismo.

O que resta é lembrança. Nas redes sociais não mais curtimos e compartilhamos hashtags patriotas. Elas estão lá, tragadas pelo passado cibernético, ilustrando as fotos do dia em que saímos de casa para fazer história. De fato fizemos, mesmo agora, não conseguindo definir ao certo que história foi essa. “O tema é completamente relevante, no sentido de a gente buscar refletir: a juventude realmente é um potencial transformador ou não? Ou pode vir a ser um rumo à conservação?” – questiona Caroline Bellaguarda.

Se os números, ainda que bizarros e inusitados, não foram suficientes para sustentar esta reportagem, o que seria necessário? Se Dostoiévski diz que “o homem do romance é o homem que fala”, quem seria o homem do jornalismo? O que fala? Que escuta? Ou que observa? Terminado o registro, os questionamentos se multiplicam. Talvez não precise de números, talvez precise deixar de lado as certezas e abraçar mais pontos de interrogação. Talvez o jornalismo precise de perguntas, e talvez sejam elas que nos calam. Talvez...

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