quarta-feira, 2 de outubro de 2013

Sete asas

Claudia Reis



Já fui pássaro um dia.

Geralmente lembrava de passar a manga da blusa pela boca quando me aproximava das pessoas, mas esquecia de limpar os pés. O barro com que construía e reformava a minha casa ia se soltando dos sapatos aos poucos, deixando rastros de terra, grama e instinto, e eles deduziam então que eu vivia na periferia da cidade.

Quando pequeno, chapinhar nas poças não causava estranheza; havia várias outras crianças que gostavam de dançar sob a chuva. Depois que cresci é que o hábito passou a desencadear risos e comentários, feitos também pelos adultos que um dia compartilharam aquelas poças comigo.
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Pescadores da Ilha de Santa Catarina preservam um costume praticado pelo mundo todo: eles passeiam com seus passarinhos. A gaiola vai apoiada na mão, como se fosse uma bandeja, ou no guidom da bicicleta. É importante para o bichinho ver o céu, sentir a brisa, observar as árvores, as outras aves e a mudança da paisagem, e seus donos se preocupam com suas necessidades. Eles querem o melhor para os passarinhos queridos, e muitos deles realizam as caminhadas porque assim a ave canta melhor. Quando é manhã cedinho, ou o dia já vai embora, a grade segue coberta pelo caminho, a fim de não importunar o bichinho que supostamente dorme.
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Já fui pássaro um dia.

Guardar minhas penas por baixo das roupas até que era fácil, mesmo durante o verão. Difícil era conter a vontade de sair voando. Muitas vezes tive que disfarçar o início do voo com tropeções desastrados. Depois dos trupicos, me aprumava e fazia força para manter os pés no asfalto. É que eles não entenderiam. Ninguém podia entender.

O farfalhar das penas ao toque agreste do vento não é a sensação mais especial que se tem ao voar. O silêncio, este sim, é quem chama ao encontro das nuvens quando o barulho das fofocas e das mesquinharias no escritório se torna mais que enfadonho.

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O mundo dos homens não é o único a conferir distinção a partir das cores dos corpos: pássaros como tucanos, papagaios, periquitos e araras ainda são traficados da Amazônia para os estados do sul e sudeste do Brasil, e para o exterior. Colecionadores chegam a pagar até R$ 50 mil por um exemplar.

As saíras, os canários e os sanhaços também são aves silvestres. De acordo com as leis do País, para engaiolar pássaros silvestres é necessário ter autorização do Ibama.
Bem-te-vis, joões-de-barro e pardais são pássaros silvestres, mas nem sua cor nem seu canto estridente são atrativos suficientes para torná-los alvos mais frequentes das gaiolas.

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Já fui pássaro um dia.

E o assobio me acompanhava dia e noite. Meu cotidiano era feito de soprar canções enquanto me arrumava, preparava refeições, caminhava-quase-voando ao trabalho, executava tarefas burocráticas, ia ao supermercado, pagava as contas no banco e corria os olhos pelas estantes da biblioteca.

A prática geralmente agradava quem convivia comigo, mas fui expulso de dois velórios, justamente quando assobiava com mais entusiasmo; num deles me solicitaram gentilmente que parasse - ou ao menos assobiasse mais baixo -, mas no outro me enxotaram mesmo. Nas duas ocasiões, no entanto, pude perceber que havia os que gostariam que eu continuasse. Nenhum deles falou nada quando fui embora.
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Diversas foram as músicas de Luiz Gonzaga que cantaram a dor do estio e as peculiaridades da fauna nordestina. Asa Branca mandou contar que, quando o tempo é de seca, a ave batizada com esse nome anuncia sua chegada indo embora, como os retirantes. Em Assum Preto, Gonzagão lamenta o destino do pássaro negro, predestinado a cantar lindezas à custa da visão: "Tudo em vorta é só beleza/ Sol de Abril e a mata em frô/ Mas Assum Preto, cego dos óio/ Num vendo a luz, ai, canta de dor/ Tarvez por ignorança/ Ou mardade das pió/ Furaro os óio do Assum Preto/ Pra ele assim, ai, cantá de mió".

São também diversas as formas de se perseguir o canto mais bonito. Há cds com gravação de notas, que devem ser tocados por horas a fio para que o pássaro aprenda como deve emitir o som. Muitas vezes a ave é isolada das outras desde pequena, a fim de não sofrer interferências sonoras que influenciem seu aprendizado.

Criadores amadoristas de pássaros são vistos como auxiliares na preservação de espécies que correm o perigo de extinção. Vivendo em cativeiro, as aves estão a salvo da ação destruidora do homem.

De acordo com o Ibama, criadores amadoristas, em nenhuma hipótese, deverão soltar os pássaros de sua criação.
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Já fui pássaro um dia.
Hoje quero ser flor.

Um comentário:

Jornalismo em impressos disse...

muito inspirado, professora-passarinho! obrigada pelas deliciosas horas de voo na sua leitura!

Raquel