quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Nos olhos dos outros...

Claudia Reis


São animais, animais massacrados. Só isso, pelo que me diz respeito. Cabe ao público ver o que deseja ver” – Pablo Picasso, sobre seu quadro Guernica, que foi pintado em 1937, e retrata o bombardeio sofrido pela cidade espanhola de mesmo nome
O jornalismo já mudou a minha vida algumas vezes.

Uma delas foi em 2004, quando estava me despedindo do curso e, no meio da monografia e de outro trabalho final, participava da edição n° 11 do jornal-laboratório Fato & Versão, coordenado pela professora Raquel Wandelli.

Minha pauta tinha objetivo específico: sensibilizar a direção da Unisul Pedra Branca quanto à forma como lidava com o problema dos cães abandonados no campus. A ideia era mostrar as diversas maneiras com que o ser humano tratava os animais, trazendo também alternativas humanizadas que já eram aplicadas por empresas, instituições e mesmo no cotidiano, de forma individual, por pessoas iguais a mim e você. 

Capa de Tutela Jurídica dos Animais, 

de Edna Cardozo Dias
Um dos trechos que mais me marcou foi retirado do livro Tutela Jurídica dos Animais, de Edna Cardozo Dias. A obra foi adaptada de sua tese de doutorado, defendida junto à UniversidadeFederal de Minas Gerais (UFMG), em 2001.  O fragmento abaixo me chamou a atenção principalmente porque lembrei das matérias de TV que tinham como tema o soro antiofídico, e as cenas que acompanhavam os offs mostravam o veneno escorrendo das peçanhas das cobras. Não havia registro, pelo menos em minha memória, da imagem de cavalos nessas matérias. 

Na obra, Edna conta 
a história do cavalo 814 que servia ao Instituto Butantã como um dos animais soroprodutores – aqueles que produzem antídoto para venenos, como o de cobra. “O processo de fabricação de soros consiste em se injetar veneno de cobra, escorpião ou aranha nos cavalos, para a reprodução de anticorpos. O impacto do veneno é tão forte que ele precisa ser recebido em três dosagens. Os cavalos são amarrados em um tronco, sem chance de defesa, e recebem em dias alternados as doses do veneno. Cheios de dor, arrastam-se até o cercadão, onde descansam alguns dias e voltam ao tronco para serem sangrados. Alguns dias de descanso e recomeça ao martírio, que só termina quando morre o animal”. 
Descoberto pelo Jornal do Brasil em 1990, o 814 apresentava as costas com sangramentos contínuos, não tinha um olho, sofria terríveis cólicas de fígado e continuava a receber veneno para ser sangrado. Estima-se que a vida média dos cavalos desses institutos seja de quatro a cinco anos, mas o 814 já era utilizado pelo Butantã há 14 anos. Ao saber do caso, entidades ecológicas tentaram levar o animal a uma fazenda onde poderia se aposentar, mas os experimentadores nem ao menos aceitaram dialogar ou admitiram os maus-tratos. Diante do impasse, solicitou-se a intervenção do Conselho Regional de Medicina Veterinária de Belo Horizonte, e só então se abriu uma sindicância para esclarecer o modo como os cavalos – especificamente o 814 - eram tratados.

Em 13 de março de 1990, o Instituto Butantã alegou “não haver outro método eficaz para produção de soros e que o estado de saúde do referido cavalo era bom, estava bem alimentado e que não era economicamente viável a sua aposentadoria”. Edna traz ainda a justificativa completa do Dr. Assis Isaias Raw, o Coordenador da Comissão de Produção de Soros Hiperimunes, questionando a importância do uso de cavalos na obtenção de soro: “O que fazer então? Deixar, simplesmente, que aproximadamente 25 mil brasileiros, principalmente trabalhadores rurais, morram anualmente quando vitimados por picadas de serpentes, por exemplo?”. Em 22 de março do mesmo ano, ou seja, nove dias depois do instituto afirmar a boa saúde do 814, o próprio Butantã divulga a sua morte e de mais dois animais, justificando-a com o diagnóstico de “um adiantado estado degenerativo”.

A matéria toda rendeu seis páginas do Fato & Versão, e teve como título “A irracionalidade (de quem?)”.

De Minas também está saindo, quentinho, recorte da tese de doutorado de Thales Tréz, professor da Universidade Federal de Alfenas (Unifal), intitulada Entendendo a experimentação animal – A crítica científica ao uso de animais como modelos de pesquisa para a saúde humana. 

Thales Tréz participou, em 2009, 
do VII World Congress on Alternatives and 
Animal Use in Life Sciences, realizado em Roma
Em 1997, estudante de graduação da UFSC, Thales entrou com pedido de objeção de consciência, recusando-se a participar da disciplina de fisiologia, por conter aulas práticas com vivissecção. Em menores proporções, Thales antecipou a ação dos que invadiram o Instituto Royal: ao se deparar com o cão saudável em cima da mesa, não pensou duas vezes; agarrou o cachorro e saiu correndo da sala. Depois do episódio, a prática – sempre a mesma, repetida semestre após semestre - foi substituída por exibição de vídeo. O Departamento de Fisiologia da UFSC ainda o acusou de roubo de dois patrimônios públicos: o cachorro e sua coleira.

Depois do Fato & Versão impresso, e já profundamente impactada por tudo o que tinha reproduzido, peguei uns treze quilos do jornal e saí ao centro de Florianópolis, a fim de distribuí-lo nos cursinhos pré-vestibulares e de conversar com os professores de Biologia, sugerindo o tema para debate em sala.

Capa do Fato & Versão n° 11, editado em 2004
 Hoje vejo como fui ingênua. Os mais simpáticos apenas sorriam, sem dizer nada. Outro argumentou com certa raiva que, se existiam cobaias humanas para substituir animais, é porque essas pessoas que se submetiam aos testes eram pagas para isso, como se só a grana envolvida no processo justificasse a substituição.

Outro momento que ficou fortemente registrado daquela época é que, lendo a matéria depois de impressa, me assustei: “mas esses relatos são de 1990! Já deve haver métodos alternativos!”. Nada. A sangria de cavalos continuava, quatorze anos depois, a ser a única forma de salvar pessoas picadas por cobras. Hoje, googleando para este texto, tenho a grata surpresa de encontrar matéria publicada no site da Unicamp, em 2008, divulgando que a Universidade de São Paulo (USP) desenvolve pesquisas para substituir o método secular: a partir da engenharia genética, estão produzindo substância que se liga às proteínas do veneno, bloqueando, assim, suas ações nocivas. Número de cavalos envolvidos para salvar pessoas: zero.

Com toda a polêmica que ainda ecoa sobre o caso Instituto Royal, um dos argumentos de quem defende os testes em animais que parece rematar diversas discussões é: “então você prefere ver seu filho morrer de câncer a permitir que testem em animais substâncias que poderiam deter a doença?”. A minha resposta pode não encerrar o debate, e nem resolver o impasse, mas me faz continuar refletindo: “Você aceitaria que tomassem seu filho para servir de cobaia a medicamentos que pudessem salvar a humanidade de doenças mortais?”.

Talvez o cerne da questão seja apenas um: permitimos a crueldade porque ela acontece com quem não convivemos. Com os que estão longe dos nossos olhos. Porque se é um “mal necessário”, que esse mal seja feito com os outros, menos comigo e com a minha família.

Por que aceitamos que façam com os outros o que não queremos que façam conosco? Pelo fato de que não falam a nossa língua? Não acreditam no mesmo deus e não têm a mesma cor de pele? Isso nos daria o direito de escravizá-los a fim de nos beneficiar, quando esse benefício é consequência do sofrimento alheio? Curioso pensar que se procura livrar os homens de doenças como o câncer induzindo outros seres a terem câncer para que possamos testar curas.

Xampu concentrado nos olhos de coelhos é refresco.

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