quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Diálogos com o passado e com o futuro

Luciano Bitencourt

Lançado recentemente nos Estados Unidos, o livro The New Digital Age faz projeções quanto ao futuro da internet. Escrito por Eric Schmidt e Jored Cohen, membros do alto escalão do Google, o trabalho faz referência aos impactos da rede mundial de computadores no comportamento, na política, na sociedade... Interessa, aqui, um dos aspectos abordados na obra e enfatizados nos textos brasileiros em alusão a ela. Dizem Schmidt e Cohen que não há "esquecimento" na internet. O volume de dados sobre nós mesmos tende a crescer tanto que não vamos conseguir controlar seus efeitos. Estaremos expostos por conta dos pontos de vista sedimentados em "postagens" de toda a sorte, mesmo as mais fortuitas.

Precisaríamos aprofundar essa ideia de "esquecimento", pautada excessivamente numa concepção de "memória" nada afetiva. A título de curiosidade, parti em busca de "rastros" por mim deixados nos sistemas de busca e encontrei uma entrevista dada despretenciosamente em 2008, ainda disponível no Observatório da Imprensa. Na oportunidade coordenando o curso de Comunicação Social da Unisul, fui procurado por Alessandro Engroff, então estudante, para falar sobre uma suposta banalização do Jornalismo enquanto escolha profissional.

Os argumentos para a entrevista, feita por e-mail, giravam em torno do aumento de cursos na área e, por consequência, da vulgarização do ingresso no ensino superior diante da privatização da maior parte das vagas disponíveis nos processos formativos espalhados pelo país. As questões nasciam da ideia de que a imaturidade na escolha profissional e o glamour da atividade (cercada de "viagens, aparições na televisão e status social"), fomentavam o interesse pelo diploma. Reproduzo partes do ping-pong, cujas respostas dividi com o coordenador do curso de Jornalismo da UFSC também à época, Aureo Moraes. Selecionei, claro, algumas questões como forma de ilustrar as reflexões que proponho.


Na universidade na qual você coordena o curso, é notável a banalização pela escolha do curso de jornalismo? Você acha que a facilidade em passar no vestibular, geralmente maior no vestibular das universidades particulares, em relação às públicas, contribui para essa escolha?
Luciano Bitencourt – A questão da eventual banalização é mais complexa. Em primeiro lugar, é preciso reforçar que o vestibular tornou-se uma prática descontextualizada. É um processo seletivo. E processos seletivos só servem para lugares em que a seleção precisa ser rápida e os critérios, eliminatórios. Sendo assim, se justifica em lugares com grande demanda em relação à oferta. Em si mesmo, o vestibular não garante o acesso dos mais qualificados para o curso; no máximo, dos melhores preparados para a prova seletiva. E são coisas diferentes. Em segundo lugar, não creio que a opção pelo Jornalismo esteja banalizada. Creio que a visão do jornalismo ("vendida", inclusive, pelos próprios cursos) é que está fora de contexto. Como mediador social, o jornalista está perdendo sua função e, ele próprio, banalizando sua atividade, sendo conivente com os processos de exclusão social e se colocando ao lado das esferas de poder. Além disso, o jornalismo, para quem está ingressando no curso superior, não é uma atividade muito clara; ela se confunde com a das outras habilitações. Creio que a grande maioria dos estudantes só vai se dar conta do que é ser jornalista ao longo do curso.

A pergunta, pareceu-me, assumia o tipo de carência jornalística sobre a qual as notícias são construídas. Qualquer resposta reforça, nesse caso, o sentido da banalização. Mesmo uma negativa. Ficou evidente também a pseudopolêmica sobre a "facilidade" de passar no vestibular, principalmente nas "universidades particulares"; como se o ensino superior fosse exclusividade de quem tem condições intelectuais de ingressar no douto mundo da ciência. Nesse aspecto, o sistema educacional no Brasil é perverso: ao mesmo tempo em que vincula arbitrariamente o "ensino de nível superior" à atuação profissional, segrega o acesso às oportunidades de formação. E o discurso sobre a qualidade do sistema incorpora a segregação pelos processos seletivos. A medicina e a engenharia no Brasil, por exemplo, são quase que exclusividade de quem tem capacidade intelectual ou condição financeira de acessar o sistema. E parece que o Jornalismo pleiteia o mesmo status.

As políticas inclusivas, sustentadas por bolsas e cotas, ajudam a amenizar disparidades ocasionadas pelos processos seletivos de instituições de ensino superior e permitem um aumento no espectro de oportunidades para que se desenvolvam competências, inclusive as cognitivas, ao longo do processo de formação. Mas reforçam a lógica segregadora na ocupação de vagas e generalizam a ideia de que o que não é financiado pelo Estado em termos de educação é ruim justamente por isso. O ensino superior privado, no Brasil, é oferecido por instituições de diferentes naturezas, nem todas pertencentes a grupos privados de capital aberto. Sem essa contextualização, fica difícil discernir entre o "joio" e o "trigo", como estimula a entrevista.


Ainda se percebe, por parte dos acadêmicos, a presunção de que "jornalismo é glamour"? Este é um dos motivos que os levam a escolher o curso?
L.B. – Ainda há quem pense assim. Mas creio que essa visão está mudando. O sentido de glamour vem do trabalho televisivo. E essa mídia já está "morrendo". Ainda vai demorar um pouquinho para que se perceba isso por aqui, mas o campo de trabalho está migrando para espaços em que o glamour não cabe. Acho que o problema é a idéia de que o jornalista é meio que o dono da verdade. Essa característica é mais forte. E hoje, os estudantes tendem a não compreender que o discurso jornalístico não deve expressar verdades absolutas (sobretudo as opinativas). O discurso jornalístico ainda é um "discurso de verdades", quando deveria ser o discurso resultante do exercício intelectual de interpretação do mundo e, portanto, uma versão possível.

Outro típico questionamento baseado em pré-concepção sem fundamento consistente. Existem regiões em que os cursos de Jornalismo estão entre os mais procurados, em que as oportunidades de trabalho são mais valorizadas. Na recente pesquisa Quem é o Jornalista Brasileiro? organizada pelo Núcleo de Estudos sobre Transformações no Mundo do Trabalho, vinculado à pós-graduação em Sociologia Política da UFSC, constata-se que quase a metade dos jornalistas brasileiros não estão mais trabalhando em mídias; e quase metade dos que ainda frequentam os postos de trabalho inscritos na tradição têm vínculo com micro e pequenas empresas. Há um deslocamento evidente de força de trabalho no Jornalismo para ambientes até então considerados alternativos. Essa coisa de glamour talvez nunca tenha existido de fato. A questão principal é, ainda, o que motiva a escolha pela atividade profissional.

Não se consegue com clareza apontar razões para justificar índices ainda tão altos de escolha por uma profissão que tem sido, ao longo dos últimos anos, massacrada por estudos que a definem como opção pouco atrativa em termos de salário, de ambiente de trabalho, de perspectiva. Ainda é difícil de entender com clareza porque o fim da exigência do diploma tenha impactado tão pouco no contexto da formação jornalística. E as respostas, mesmo as informais colhidas com recém-ingressantes nos cursos de Jornalismo, são tão diversificadas que oferecem indícios bastante genéricos. Em contrapartida, o campo da comunicação é um dos que mais cresce no mundo. A dita Sociedade do Conhecimento não tem como se estabelecer sem a circulação de informações.
Quais as ações que deveriam ser feitas para impedir o aumento dessa tendência da banalização do curso?
L.B. – Mesmo não considerando a banalização desse processo, posso dizer que há questões que precisam ser pensadas. Estamos discutindo, por exemplo, a exigência do diploma para o exercício profissional, como forma de qualificar a atividade jornalística. Mas está cada vez mais difícil acompanhar os noticiários. As informações são mal apuradas, o discurso é autoritário e os interesses quase nunca estão expressos (mesmo que implicitamente) nas matérias. Só para apontar algumas questões. A discussão sobre o diploma está restrita a uma perspectiva de "reserva de mercado". Para discutir a qualificação pelo diploma, seria preciso, primeiro, discutir o que se propõe como qualificável nos postos de trabalho (já escassos nos moldes tradicionais). A discussão é simplória, sem profundidade. Creio que são os debates em torno das questões sociais relevantes e os discursos decorrentes é que estão banalizados. E isso traz reflexos diretos nos processos de formação acadêmica.

A entrevista "picotada" a título de ilustração neste texto soa como as "postagens" que, no entendimento dos escritores membros do Google, vão compor o volume de dados capazes de constituir "juízos de valor" sobre nós mesmos. Há uma espécie de desapego quanto à fundamentação dos argumentos e uma espécie de desrespeito diante de interpretações que não corroborem com as pré-concepções que os sustentam. É quase nada pluralista a condução dos diálogos sociais por parte do Jornalismo porque parece não haver curiosidade quanto à riqueza de pontos de vista sobre as questões essenciais de nosso tempo. Ao contrário, as questões parecem exigir respostas em torno do senso comum nos extratos a que pertencem os jornalistas; em torno do que já é visível.

Mantenho a convicção de que o Jornalismo se define como exercício intelectual de interpretação do mundo. É a curiosidade de entendimento (não de explicação) que estimula a atividade; é a capacidade de perceber com os sentidos o que nos cerca que fornece materialidade expressiva ao exercício; e é a reflexão que orienta a "escritura" do cotidiano. Não há como interpretar o mundo tratando-o como objeto; não há como cultuar valores apenas e tão somente com base na "memória" nada afetiva das big data. O futuro do Jornalismo não é o futuro da internet. Porque os pés precisam das ruas para permanecerem no chão; e as ruas guardam "mistérios" que nem toda a "rede de memórias" será capaz de guardar.

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