terça-feira, 3 de setembro de 2013

O jornalista historiador

Ilustração: Fernando Goyret
Repórter Ping-Pong

Ele já contou a história de um escritor, José de Alencar. Arriscou-se a falar do primeiro ditador do Golpe de 1964, Castello Branco, e caiu nas graças da cantora Maysa. Nem ao Padre Cícero, vulgo Padim Ciço, ele resistiu. Pesquisou, entrevistou, vasculhou e salvou, para sempre, a história dessas personagens. Lira Neto se nega a escrever somente histórias lineares. Prefere as personagens controversas e absurdas.

Sua mais recente obra já está fazendo sucesso pelos cantos do Brasil, sem sequer ter sido concluída. É que Lira resolveu separar a biografia em três volumes e acaba de publicar o segundo. O último vai às bancas somente em 2014, quando o Brasil poderá refletir sobre os 60 anos da morte de Getúlio Vargas. Aliás, faltou dizer, esse é a sua personagem, a sua grande sacada, a sua ousada loucura, a sua grande obra.

O texto de Lira sobre o ditador mais querido do Brasil é um exemplo de jornalismo, no bom sentido. Lira escreve de tal modo que consegue fazer com que o leitor escolha se permanecerá amando, ou detestando a personagem. Na verdade, ele mostra tudo o quanto lhe foi possível encontrar de informações por meio de pesquisas, e então permite que o leitor forme sua opinião, baseada nas próprias inclinações.



Repórter Ping-Pong: Getúlio é, sim, o personagem mais controverso da história brasileira. É um ditador que conseguiu voltar ao poder conclamado pelo seu povo. Como isso é possível?


Lira Neto: O que fascina em Getúlio é exatamente a sua ambiguidade. O ex-presidente era um indivíduo extremamente contraditório, capaz de angariar ódios e amores extremos, na mesma e exata medida. Construiu sua imensa popularidade amparado pelo fato de ter modernizado, à época, as relações entre capital e trabalho, com uma legislação que beneficiou os trabalhadores, embora à custa do sindicalismo livre e da organização operária independente.

Ping: Diversas vezes, o presidente demorava a resolver uma questão. Como bom político, arrastava uma situação problemática até o limite para deixar que os fatos o conduzissem a melhor decisão. Getúlio foi alguém que a história escolheu, ou foi alguém que escolheu como a história seria?

Lira Neto: Getúlio combinava um singular senso de oportunidade com uma impressionante paciência histórica. De fato, preferia postergar suas decisões até uma situação limite, quando então avaliava o melhor caminho a seguir. Ele, que havia hesitado entrar na chamada “Revolução de 30”, aderiu a ela no último momento, quando percebeu que seria atropelado pelos acontecimentos caso permanecesse em uma posição de espera. Getúlio soube se fazer necessário quando a história passou diante dele, como um cavalo selado. Bom gaúcho que era, ele mesmo utilizava esta imagem, como uma explicação para sua chegada ao poder.

Ping: Você já disse que resistiu a tentação de criar qualquer linha do livro e que tudo nele é real. Entretanto, a trama é muito envolvente, o leitor muitas vezes se vê diante de situações que parecem criadas. Como isso foi possível? Você acredita que tenha sido algo que o personagem proporcionou, ou você usou muita técnica?


Lira Neto: Há, por trás do texto final, toda uma carpintaria, que deve ficar subjacente à escrita, ou seja, não permitindo que os andaimes da construção narrativa fiquem à mostra. Recorro a toda espécie de fontes históricas, para a reconstituição dos episódios retratados em meus livros: além da vasta bibliografia citada ao final de cada volume, lanço mão de jornais de época, cartas, jingles políticos, sambas, marchinhas, cartazes, pôsteres, filmes, gravações de áudio, fotografias, inquéritos policiais, autos de processos judiciais, ou seja, tudo que ajude a levar o leitor para dentro da cena.

Ping: Ainda que você tenha conseguido mostrar a multiplicidade de faces de Getúlio, o seu julgamento, sobre ele, parece-me positivo. Você acredita que isso influenciou no resultado do livro, visto que as narrativas sempre têm objetivos previamente estabelecidos pelo narrador, que nesse caso é você.

Lira Neto: Engraçado você fazer essa observação, afirmando que, em sua leitura, teria detectado um suposto “julgamento positivo”, de minha parte, a respeito do biografado. Pois acabei de ler um texto assinado pelo jornalista Paulo Henrique Amorim, na internet, em que ele afirma exatamente o contrário, acusando-me de ter “uma irrefreável inclinação udenista” contra Getúlio. Na verdade, na condição de biógrafo, busco manter a maior isenção possível, como uma obrigação profissional de repórter. Mas já me acostumei a esse tipo de opiniões divergentes. Quando biografei Padre Cícero, devotos do sacerdote me acusaram de tentar desconstruir-lhe a reputação, enquanto evangélicos insinuaram que havia recebido dinheiro do Vaticano para pavimentar a beatificação do “Padim Ciço”.

Ping: Antes de mergulhar no mundo da biografia, você fez um trabalho de pesquisa auxiliando Fernando Morais que, à época, queria escrever sobre grandes personagens da história brasileira, sob o ponto de vista de personagens secundárias, que estavam no entorno de grandes figuras. Essa, aliás, é a origem da sua biografia sobre o Padre Cícero. Você acredita que a forte presença das personagens secundárias como Góes Monteiro, Osvaldo Aranha e outros tantos, no livro de Getúlio, seja uma marca do Lira Neto?

Lira Neto: Costumo recorrer ao poeta John Donne: “nenhum homem é uma ilha”. Toda biografia, do mesmo modo que toda e qualquer história de vida, é atravessada e permeada por outras existências. Impossível escrever sobre Getúlio sem se deter na história de “coadjuvantes” como Aranha, Góes, João Neves, Dutra, João Alberto etc.

Ping: Você vem utilizando muito as redes sociais Twitter e Facebook e também criou sites para divulgar a biografia. Essa é uma necessidade do biógrafo da atualidade?

Lira Neto: A internet e as redes sociais me permitem estabelecer uma interlocução permanente com os leitores. Isso é fascinante para um autor de livros. Por mim, nunca gostei de torres de marfim e de encastelamentos. Gosto do diálogo, da troca de opiniões, do conhecimento compartilhado.

Ping: Não é para qualquer escritor que uma editora concede a possibilidade de escrever uma biografia em três volumes. A Companhia das Letras arriscou e atingiu êxito? Em outras palavras, o Lira Neto já está rico com a venda dos dois primeiros volumes? Como estão as vendas?

Lira Neto: O primeiro volume teve tiragem inicial de 30 mil exemplares e já está na segunda reimpressão. O segundo repetiu a marca de 30 mil exemplares como ponto de partida e, três semanas após o lançamento, está pela terceira vez na lista dos mais vendidos em todo o país. Não dá para ficar rico com isso, mas dá para sobreviver com um mínimo de dignidade. Hoje, os direitos autorais são minha única fonte de renda. Vivo – ou sobrevivo – do que escrevo.

Ping: As críticas a sua obra são muito positivas. Tanto a imprensa quanto os leitores aprovaram os dois primeiros volumes. Isso é o resultado de um impecável trabalho do autor? Ou mais uma façanha de Getúlio?

Lira Neto: Creio que a boa acolhida de público e toda essa atenção que a obra vem recebendo da imprensa seja fruto do “recall” do personagem. Mas imagino também que, em alguma medida, isso se deva a algum mérito que o trabalho porventura tenha. Fico feliz com o reconhecimento dos leitores e da crítica.

Ping: O lançamento do último volume culminará com os 60 anos do suicídio de Vargas. Essa é a estratégia de venda perfeita? Você acredita que eventos como a Copa do Mundo, bem como as eleições atrapalharão a repercussão do livro, ou as coisas não se misturam?

Lira Neto: Creio que os 60 anos da morte de Getúlio, independentemente de quaisquer outros fatores e eventos, trazem uma excelente oportunidade para fazermos uma reflexão sobre o legado da chamada Era Vargas, discutindo o que de positivo e negativo ela significou para o país.

Ping: Segundo a contracapa de seu livro, dois dos principais homens da política nacional leram a obra. Em que aspectos da vida de Getúlio eles podem se basear para mudar o país? Lembro que há tempos falamos em reforma política no país. E em 1930, com muita determinação, foi exatamente isso o que Getúlio fez, não?

Lira Neto: A reforma política se faz urgente. E o fato de Lula e FHC assinarem a contracapa do livro aponta para a perspectiva de se discutir o Brasil sem maniqueísmos estéreis, sem se cair na tentação e nas armadilhas do pensamento dicotômico, binário.


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