quarta-feira, 11 de setembro de 2013

O combatente da pressa

Raquel Wandelli

Entregar o controle do tempo à máquina capitalista representa a morte da flânerie. Por isso o andarilho voyeur se procria na autogestão do tempo. A instauração do tempo industrial pelo taylorismo foi, como anunciou Benjamin, uma das causas dessa morte. Se o flâneur é um homem ocioso, livre para debruçar seu olhar pela cidade e até vadiar, é também “um boêmio em constante estado de revolta contra a sociedade burguesa” (BENJAMIN, 1994b, p. 34). Flanar é ver e dar a ver as contradições dessa sociedade. Nos fins do século XIX, nos diz Benjamin, já desaparecia essa figura histórica observadora da modernidade que nasceu condenada pelo tempo da máquina capitalista que ela busca transgredir.

Ensina a filosofia da linguagem que certas operações discursivas conferem o efeito de verdade à narrativa jornalística, onde cada detalhe, cada pormenor é bem mensurado, classificado e situado no tempo e no espaço. Advérbios dêiticos e estruturas verbais mais acabadas, como o presente ou o passado perfeito, que situam os fatos em um período datado, caracterizam o modo do tempo no jornalismo. Em seu devir ficção, todavia, a escrita flâneur desestabiliza o efeito de clareza, precisão e definitude que ela própria incorpora em seu porvir jornalismo. E o faz abusando paradoxalmente de pronomes e artigos indefinidos e modos de tempo dúbios e inacabados, como protocolos próprios do tempo da ficção: “certa vez”, “uma vez”, “era uma vez...”, “um porteiro da Park Avenue com três fragmentos de bala na cabeça – que estão lá desde a primeira Guerra Mundial” (TALESE, 2004, p. 20).

Nesse modo de menor precisão, o jornalista ultrapassa a condição de “testemunha ocular da história” para ser o narrador, aquele que, nos termos de Walter Benjamin, narra experimentando a história do seu tempo e, sobretudo, recolhe a experiência alheia (1994d, p. 221). A definitude da informação é perturbada pela lógica da ficção (HAMBURGER, 1986), acionada pelas estruturas de tempo imperfeitas ou mais que perfeitas, que justamente concorrem para a instauração de um não-tempo ou do tempo dos possíveis, que é o tempo da literatura e da exegese (capaz de nos fazer mergulhar no mundo da ficção) e também o tempo inumano sugerido por Lyotard: “Andar depressa é esquecer depressa, reter apenas a informação útil no momento, como acontece com a 'leitura rápida'. Mas a escrita e a leitura são vagarosas, avançam para trás, na direção da coisa desconhecida no 'interior'" (LYOTARD, 1987, p. 10).

Literatura, como nos mostra o filósofo  Lyotard ao longo de sua obra, se faz de um movimento para trás, para a infância, porque de descoberta, rumo a uma zona de indiscernibilidade, onde o ser começa na noite da criança: humano e bicho. Retorno a um tempo multilinear, de avanços e recuos, no qual não interessa a posse ou a fixação do território, mas a força desterritorializadora e despersonalizadora do percurso. Filho desse modo de tempo, o flâneur perfaz não a volta à Origem, mas um recuo progressivo a um passado coletivo, a uma infância indefinida, que não é a própria.
"A rua conduz o flanador a um tempo desaparecido. Para ele, todas são íngremes. Conduzem para baixo, se não para as mães, para um passado que pode ser tanto mais enfeitiçante na medida em que não é o seu próprio, o particular. Contudo, este permanece sempre o tempo de uma infância" (BENJAMIN, 1994a, p. 185).

Quem caminha entrecruza os tempos nas linhas da vida. Um caminhante não faz adesão nem ao tempo presente, nem ao passado. Filho insubordinado do capitalismo, o flâneur nasce sob o signo do desenvolvimento e do progresso que ele critica, no paradoxo de ser cria e inimigo do capitalismo. Na base da flânerie encontra-se “a intuição de que o produto da ociosidade é mais valioso que o do trabalho” (BENJAMIN, 1994a, p. 233).

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