"E foi bem em frente a praça dos namorados que o sinaleiro fechou, e quando o ônibus parou fiquei exatamente ao lado dos restos de um cachorro que recém havia sido atropelado" |
Hoje o céu acordou azul e ensolarado e tinha tudo pra ser um grande dia, se eu já não tivesse acordado ruim, com os olhos ardidos e doídos das lágrimas da noite passada (sim, isso ainda não mudou). Juro que fiz força para abri-los tamanho era o inchaço das pálpebras e o medo de tornar real o motivo do meu desatino. Por fim consegui abrir e pude notar meus móveis intactos e ainda emaranhados pela pilha de roupas sujas.
Pensei então: “os móveis não sucumbiram a mais um terremoto emocional, não serei eu a desafiá-los”, puxei uma toalha da gaveta e fui lavar os vestígios de lágrimas que insistiam em permanecer no meu pescoço. Mas não se preocupe com o enrolar do início da carta, eu venho sobrevivendo assim e você bem sabe que a culpa é minha.
Poderia ter sido do outro lado da pista, sentido ilha/continente, do outro lado da janela ou eu poderia até estar dentro do ônibus das nove e meia. Mas você sabe que pontualidade nunca foi meu forte. Escolhi as poltronas vazias e sentei na janela, como de costume. Coloquei os fones de ouvido, o volume no máximo e ignorei a ausência de um bom dia caloroso que há meses vinha recebendo pelo celular. Apaguei as músicas que me traziam lembranças e me peguei ouvindo um pop besta e antigo, que surpreendentemente me animou.
E foi bem em frente a praça dos namorados que o sinaleiro fechou, e quando o ônibus parou fiquei exatamente ao lado dos restos de um cachorro que recém havia sido atropelado. Meu ímpeto foi de virar o rosto e tapar os olhos, fiz isso tão rápido que nem me dei conta de que havia feito. Pensei que iria sentir algo parecido com ânsia, que iria sentir dor no estômago e na cabeça, mas não senti nada além dos meus olhos formigando de pena e raiva.
De todos os sentimentos que já senti durante a minha vida posso classificar pena como o pior deles, ela mexe com todos os aspectos da nossa vida, lembranças, dores e princípios. E eu que normalmente permaneceria de olhos fechados e respirando fundo pra sair dali de uma vez, me virei para o lado da janela e fixei no chão, nas tripas, na poça de sangue e na carcaça peluda que mais parecia um tapete recostado no asfalto. Encarei tudo que eu jamais teria coragem de olhar e olhei sem piscar e sem respirar, não era como nos filmes ou nas fotos da internet, era pior. Procurei pela cabeça do animal, mas não encontrei. Provável que estivesse estraçalhada como o resto do corpo, os olhos, os dentes, o rabo, as patas. Foi-se tudo e não virou pó, virou piche.
O ônibus seguiu e eu pensei no meu primo, nas coisas que ele presencia durante os plantões no hospital e nas vezes em que ele me disse: “a gente se acostuma”. Talvez a pessoa que atropelou seja acostumada e talvez o impacto das costelas do cachorro na roda do seu carro não tenha lhe causado dor alguma. Pensei no meu primo mais uma vez e ele, sem dúvidas, teria chorado feito um bebê se fosse o motorista daquele carro.
Fiquei com medo por talvez entender o problema das pessoas más, elas estão acostumadas a viver sem humanidade. Quanto somos capazes de aguentar antes de perdermos a nossa? Não quero mais me sentir forte e fria diante dos problemas que se repetem ao decorrer da minha vida. Não quero me acostumar a viver acostumada. Quero ser capaz de sentir minha humanidade aflorada e ter certeza que as coisas ruins não foram capazes de me endurecer. Quero ser mole e humana.
E o fato é que acordei mais um dia sendo uma coberta de defeitos, sentindo a dor de perder alguém e com o medo dessa perda ser definitiva. Acordei humana e vou dormir humana.
Despeço-me agora sem mais desabafos e enfatizo ter achado apropriado lhe escrever para relatar o momento mais real que me ousei testemunhar.
Foto: Cristina Souza
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