terça-feira, 27 de agosto de 2013

Uma carta humana

Camila Albuquerque


"E foi bem em frente a praça dos namorados que o sinaleiro fechou,
e quando o ônibus parou fiquei exatamente ao lado
dos restos de um cachorro que recém havia sido atropelado"
Lembro-me bem da última carta que trocamos, em que você havia dito que eu deveria lhe escrever apenas quando algo marcante acontecesse na minha vida, algo que lhe afetaria da mesma forma - ou até mais do que a mim. Em momento algum você escreveu dizendo querer ler apenas coisas boas e então achei apropriado lhe escrever sobre o que me aconteceu nessa manhã.

Hoje o céu acordou azul e ensolarado e tinha tudo pra ser um grande dia, se eu já não tivesse acordado ruim, com os olhos ardidos e doídos das lágrimas da noite passada (sim, isso ainda não mudou). Juro que fiz força para abri-los tamanho era o inchaço das pálpebras e o medo de tornar real o motivo do meu desatino. Por fim consegui abrir e pude notar meus móveis intactos e ainda emaranhados pela pilha de roupas sujas. 

Pensei então: “os móveis não sucumbiram a mais um terremoto emocional, não serei eu a desafiá-los”, puxei uma toalha da gaveta e fui lavar os vestígios de lágrimas que insistiam em permanecer no meu pescoço. Mas não se preocupe com o enrolar do início da carta, eu venho sobrevivendo assim e você bem sabe que a culpa é minha.

Poderia ter sido do outro lado da pista, sentido ilha/continente, do outro lado da janela ou eu poderia até estar dentro do ônibus das nove e meia. Mas você sabe que pontualidade nunca foi meu forte. Escolhi as poltronas vazias e sentei na janela, como de costume. Coloquei os fones de ouvido, o volume no máximo e ignorei a ausência de um bom dia caloroso que há meses vinha recebendo pelo celular. Apaguei as músicas que me traziam lembranças e me peguei ouvindo um pop besta e antigo, que surpreendentemente me animou.

E foi bem em frente a praça dos namorados que o sinaleiro fechou, e quando o ônibus parou fiquei exatamente ao lado dos restos de um cachorro que recém havia sido atropelado. Meu ímpeto foi de virar o rosto e tapar os olhos, fiz isso tão rápido que nem me dei conta de que havia feito. Pensei que iria sentir algo parecido com ânsia, que iria sentir dor no estômago e na cabeça, mas não senti nada além dos meus olhos formigando de pena e raiva.

De todos os sentimentos que já senti durante a minha vida posso classificar pena como o pior deles, ela mexe com todos os aspectos da nossa vida, lembranças, dores e princípios. E eu que normalmente permaneceria de olhos fechados e respirando fundo pra sair dali de uma vez, me virei para o lado da janela e fixei no chão, nas tripas, na poça de sangue e na carcaça peluda que mais parecia um tapete recostado no asfalto. Encarei tudo que eu jamais teria coragem de olhar e olhei sem piscar e sem respirar, não era como nos filmes ou nas fotos da internet, era pior. Procurei pela cabeça do animal, mas não encontrei. Provável que estivesse estraçalhada como o resto do corpo, os olhos, os dentes, o rabo, as patas. Foi-se tudo e não virou pó, virou piche.

O ônibus seguiu e eu pensei no meu primo, nas coisas que ele presencia durante os plantões no hospital e nas vezes em que ele me disse: “a gente se acostuma”. Talvez a pessoa que atropelou seja acostumada e talvez o impacto das costelas do cachorro na roda do seu carro não tenha lhe causado dor alguma. Pensei no meu primo mais uma vez e ele, sem dúvidas, teria chorado feito um bebê se fosse o motorista daquele carro.

Fiquei com medo por talvez entender o problema das pessoas más, elas estão acostumadas a viver sem humanidade. Quanto somos capazes de aguentar antes de perdermos a nossa? Não quero mais me sentir forte e fria diante dos problemas que se repetem ao decorrer da minha vida. Não quero me acostumar a viver acostumada. Quero ser capaz de sentir minha humanidade aflorada e ter certeza que as coisas ruins não foram capazes de me endurecer. Quero ser mole e humana.

E o fato é que acordei mais um dia sendo uma coberta de defeitos, sentindo a dor de perder alguém e com o medo dessa perda ser definitiva. Acordei humana e vou dormir humana.

Despeço-me agora sem mais desabafos e enfatizo ter achado apropriado lhe escrever para relatar o momento mais real que me ousei testemunhar.


Foto: Cristina Souza

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