Ana Maria Ghizzo
Noite fria de junho, já passava da meia noite quando cheguei
em Florianópolis. Sai cansada e faminta do aeroporto e a caminho de casa parei
para pegar um lanche no McDonalds Pedido feito, estacionei na fila de espera
do drive-thru. Sempre me intriga o movimento nesses restaurantes, é uma
multidão insone e faminta não sei bem de que, perambulando entre hambúrgueres e batatas
frita enquanto equilibram seus refrigerantes de tamanho exagerado em copos de
papelão. Gosto de passar o tempo imaginando histórias para aqueles rostos
anônimos.
Duas batidas delicadas interromperam minha dramaturgia da vida alheia. Do outro lado do vidro avistei a figura maltrapilha e suja. Imprimia no rosto uns vinte e poucos anos de idade, quarenta de sofrimento. Suas roupas não eram tão quentes quanto a noite exigia, embora ele não demonstrasse se importar com isso. Calça, camiseta, chinelos e boné, nada além do necessário, nada de calor nem conforto.Com um sorriso largo ele transpôs toda e qualquer distância. Vidro deposto, iniciamos a conversa. Ele elogiou meu carro, dizendo que a “máquina era uma belezura”. Dei trela, e ele me contou a vida.
Desde menino a velocidade é sua paixão. Descobri depois que já
fora piloto, quando questiono a categoria ele me responde faceiro: “rali de
velocidade, é claro”. Reparo muito em seus olhos, afinal, não são eles a janela
da alma? Os dele eram. Nunca vou esquecer daqueles olhos castanho-entorpecidos,
escuros e endurecidos pelo tempo, capazes de brilhar sorridentes ao contar as
histórias de recordes batidos, tempos incríveis e grandes conquistas ao lado de
nomes famosos do automobilismo. Me impressiono com sua capacidade de cavar da
memória tantos dados e datas.
Fiz a pergunta óbvia, de como ele tinha ido parar ali. “A
gente conhece muita gente errada na vida, né?”. Assim ele resumiu, eu concordei
e aceitei. No dia seguinte o encontrei de novo, brilho sorridente no olhar.
Conversamos por mais um tempo, e ele me pediu “uma ajudinha”. Revirei a bolsa,
estendi uma nota de cinco reais tão amassada quanto ele. Ele agradeceu e se
foi. Não nos despedimos. Melhor assim, despedir-se é sempre triste. Volta e
meia me engano ao pensar tê-lo visto em alguma sinaleira ou esquina qualquer,
mas ainda não o encontrei.
Digitando seu nome no google, encontrei as histórias que ele
me contou e outras tantas mais. Não revelo nomes por respeito, e por pensar que
não seja essa a intenção desse escrito. Escrevo como quem escreve para um amigo
distante, esperando que cada linha seja um resgate de memória num mar de
saudade.
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