sexta-feira, 26 de abril de 2013

O tempo que não foi


Ana Maria Ghizzo


Quando começamos a contar uma história é fundamental retratar “a vida como ela é”, tal qual diria Nelson Rodrigues. Mas, o que fazer com as histórias que vêm até nós, exigindo serem contadas? Histórias que por vezes ultrapassam o limite do real? Melhor mesmo é contá-las, e ver no que dá...

Vi-me em um lugar onde jamais tinha estado. Uma sala pouco iluminada com piso e paredes de madeira e um tapete vermelho que se dividia em várias direções. Um cenário que se tornou ainda mais inusitado quando percebi que cada uma das direções do confuso tapete terminava em uma porta também de madeira, e imensa! Permaneci ali, olhando as diversas direções por certo tempo. Um barulho interrompeu o silêncio da sala. Ao tentar identificar de onde vinha, notei que eram vozes e que discutiam ferozmente detrás de uma das portas. Por um instante hesitei, mas a curiosidade me fez abrir a porta.
 
Deparei-me com uns 40 homens de turbante, esbravejando uns com os outros. Custei a entender pelo que brigavam. Pareciam estar atrás de alguém que havia lhes roubado. Em meio a confusão, escutei um “psiu”, olhei na direção do som e só o que vi foram alguns barris de vinho vazios. Pensei: Estou ficando caduca. Mas o som continuou, e completou: “Venha até aqui, ou eles vão acabar te cortando a cabeça...”. Resolvi seguir a voz dos barris de vinho, e, para minha surpresa, me deparei com uma figura que até então só havia visto nos livros de fábulas infantis.

Era ele: Ali Babá! E os outros 40 eram os tais ladrões, que pareciam ter saído dos livros ainda mais furiosos... Por descuido, Ali esbarrou em um barril vazio, que rolou na direção dos ladrões. Fez-se o silêncio e todos voltaram sua atenção para os barris onde estávamos. Ali gritou que eu corresse de volta para a porta de onde vim. Novamente hesitei, desta vez por deixá-lo sozinho para enfrentar os tantos quarenta, mas lembrei que nos livros era ele que tinha um final feliz e atravessei a porta.

Para meu espanto, não retornei ao saguão inicial. Me vi em um lugar com chão, paredes e teto com-ple-ta-men-te brancos. Uma imensidão branca, que só era rompida por traços que iam do preto às mais variadas escalas de cinza. Em apenas alguns segundos estava formada “La Guernica” bem diante dos meus olhos, e, aos poucos, o branco tornava-se vermelho, como se a pintura de Picasso sangrasse em protesto contra a violência e a crueldade da Guerra Civil Espanhola, e os mais de um milhão de mortos pela barbárie de Franco. Quando o último pedacinho de branco tornou-se vermelho pude avistar outra porta.

Atravessei o preto e branco sangrento de Picasso e me deparei com um horizonte de um céu tão azul que parecia se mesclar ao oceano. E uma areia, tão branca e fofa, que parecia me abraçar os pés, como se não houvesse nada no Mundo que lhe agradasse mais do que meus passos sobre ela. Só interrompi esse sentimento de paz, conforto e harmonia quando notei pequenos pontinhos escuros surgindo no horizonte. Um pouco maiores e mais próximos notei serem as caravelas de Pedro Álvares Cabral, e me dei conta que estava em Vera Cruz: meu amado Brasil de 1500! Antes que as embarcações atracassem pude avistar outra porta. Pensei em ficar, quem sabe tentar uma intermediação mais amistosa do que a dos livros de história... Mas, completamente fora do meu controle, a porta me sugou feito um redemoinho para meu próximo destino.

Dou de cara com um menino pequeno, de aparência triste e sensível. Faço-lhe algumas perguntas, e ele me diz ter poucos amigos, um pouco por não gostar das brincadeiras que agradam aos demais. O pequenino é maduro para a idade e isso pude notar inclusive no seu jeito de falar.  Diz querer ser escritor, mesmo não se julgando um aluno brilhante. Avisto outra porta: elas parecem chegar cada vez mais cedo! Como já sei que não tenho opção, me despeço do meu mais novo amigo, e, ao perguntar seu nome, me surpreendo: “Napoleão Bonaparte, muito prazer!”. E sou levada pela porta mais uma vez.
            
Ainda surpresa pelo menino Napoleão, vou parar em uma terra de moinhos de vento, e de um entardecer tão vibrante que parece colorir os vastos campos verdes em tons alaranjados. Ao longe, no horizonte, uma voz se mistura ao vento e sussurra:

“SonharMais um sonho impossível
Lutar
 Quando é fácil ceder
Vencer o inimigo invencível
Negar quando a regra é vender
Sofrer a torutura implacável
Romper a incabível prisão
Voar num limite improvável
Tocar o inacessível chão
É minha lei, é minha questão
Virar esse mundoCravar esse chão
Não me importa saber
Se é terrível demais
Quantas guerras terei que vencer
Por um pouco de paz
E amanhã, se esse chão que eu beijei
For meu leito e perdão
Vou saber que valeu delirare morrer de paixão
E assim, seja lá como for
Vai ter fim a infinita aflição
E o mundo vai ver uma flor
Brotar do impossível chão”


O vento continua a me sussurrar coisas, e descubro estar nas terras do fidalgo justiceiro Dom Quixote de La Mancha. Generoso e bem intencionado, lutou incansavelmente para acabar com a tristeza e as dores desse Mundo, na companhia de seu fiel e beberrão escudeiro Sancho Pança. Dom Quixote sempre me encanta, e, sentada na grama admirando tão lindo entardecer, me pergunto se, de tão intenso que era, era mesmo sonhador, ou se já se havia feito sonho... E avisto outra porta.


Paro em um lindo balcão, cercada pelas mais vermelhas e apaixonadas flores. Escuto ao fundo alguém falar poeticamente: “A flor que chamamos de rosa se outro nome tivesse ainda teria o mesmo perfume”. Reconheço o trecho de Romeu e Julieta, e vejo outra porta. Romântica que sou, indigno-me, e reclamo por aparecerem cada vez mais rápido. Assunto-me quando a voz do próprio Shakespeare surge para me acalmar dizendo: “O tempo é muito lento para os que esperam, muito rápido para os que tem medo, muito longo para os que lamentam, muito curto para os que festejam... Mas, para os que amam, o tempo é eterno”.

Eu que pensava já ter visto de tudo, novamente me surpreendo ao me deparar flutuando entre as nuvens, num contraste azul e branco tão delicado que é somente rompido por uma pequena caixa de madeira que flutua bem diante de mim. Abro curiosa, e de dentro saem palavras, formando-se frase diante dos meus olhos. “Temos de nos tornar a mudança que queremos ver” - elas sussurram na voz de Gandhi. As palavras se esvaem em nuvens, e novamente volto minha atenção para a pequena caixa, de dentro dela agora sai uma imensa chave dourada, que flutua em direção ás minhas mãos, e avisto outra porta... Diferente das demais.

A simbologia de uma porta representa a passagem de uma situação para outra. Em algum domingo, que se perdeu na memória, pelo mês de outubro, o tempo atravessou portas e passou pelas janelas de um metrô qualquer retornando do passeio ao Museu de Cera de Madri, e me encontrou recostada na poltrona, lendo um livro com a sonolência habitual das horas que rondam o entardecer.  O tempo, quando percebemos vê-lo passar, deixa uma sensação estranha... Quando me dei conta do tempo que passou, levantei assustada, e me pus a sonhar... De olhos abertos.
 
Dorme, dorme, dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.   
(Fernando Pessoa, in "Cancioneiro")

Fotos: Ana Maria Ghizzo e terceiros

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