Um
teste vocacional trouxe Paulo Markun para o jornalismo. O que esse teste não
apontou, entretanto, é quem se deu melhor, se o Markun, ou o jornalismo. Não se
trata de um puxa-saquismo bobo, mas de um reconhecimento inevitável.
Não
vou me alongar na abertura, pois a entrevista é demasiadamente extensa. Seu
tamanho é uma inconveniência aos padrões normais. Um pecado de edição. Uma
afronta à pressa das pessoas e ao seu ritmo acelerado. Defendo-me, pois: Diante de
Paulo Markun é difícil tratar de um assunto. É impossível parar de perguntar,
perguntar, perguntar...
Ontem, hoje e amanhã
Repórter Ping-Pong - Você entrou no
jornalismo depois de fazer um teste vocacional. O resultado foi certeiro? Tu és
feliz profissionalmente?
Paulo Markun - Sou feliz profissionalmente sim. Na verdade, esse teste vocacional ele
não apontou o jornalismo especificamente. Naquela ocasião, 1967, eu tinha uns
15 anos, apareceram duas faculdades convencionais: Letras e História e uma
faculdade que acabava de ser criada que era a Escola de Comunicações. A pessoa
que me aplicou o teste mencionou o fato de que essa faculdade de comunicações
parecia, digamos, apropriada porque não era uma coisa fechada numa atividade
só. Ela tinha artes, comunicações, várias áreas.
Naquele
primeiro momento da ECA, que eu não peguei por que quando eu entrei na isso já
tinha acabado, havia a ideia de que ali iria se formar um profissional não
necessariamente vinculado a uma profissão específica. Então, tinha um período
mais denso, que era o período básico, em que você estudava com todo mundo
junto. Eu peguei ainda isso no primeiro ano só. Mas quando entrei, em 1971, a faculdade já tinha
se rendido às regras do mercado e do sistema porque nós estávamos em plena
ditadura e os caras não gostavam muito dessa ideia de uma coisa mais livre
assim.
Sim,
acho que é uma opção legal, principalmente por que eu não me enquadro só nessa
casinha do jornalismo, digamos assim. Eu sempre tive outras funções paralelas,
ou documentários, a televisão, um pouco de história nos livros que eu escrevi e
assim por diante.
Ping - Nos primeiros anos da carreira
você atuou como repórter, passando pelos principais impressos no Brasil. Agora
você se dedica a fazer documentário e livros. Por que essa opção? Você acredita
que não dá para escrever bem num espaço reduzido de linhas, ou num curto tempo
de televisão?
Markun - Não
é problema do tamanho. É o problema do salário. A reportagem, há bastante
tempo, vem sendo tratada secundariamente na televisão e no jornal. Há muito
tempo a profissão valoriza os profissionais que deixam a reportagem. A
reportagem é uma espécie de porta de entrada da atividade. São raros os
repórteres muito experientes e bem remunerados que continuam tendo espaço para
trabalhar. Existem, mas são uma minoria, tanto na televisão e principalmente
nos jornais e nas revistas. Acontece que quem se destaca acaba virando editor,
chefe de reportagem, redator, Publisher e assim por diante.
O
documentário e o livro proporcionam essa atividade de apuração mesmo, que é a
base da nossa ação de maneira mais aprofundada e, no meu caso, de uma maneira
que dá pra viver disso, porque os livros têm patrocínio e sempre busquei leis
de incentivo ou apoiadores. E os documentários porque já começa a ter um
mercado pra isso. Então eu diria que não é uma opção porque o tamanho é maior.
É por que você pode se aprofundar mais e produzir conteúdo. Muitas vezes, pra
você produzir muito conteúdo você precisa de apuração e isso a grande impressa
dificilmente tem tempo ou não investe o suficiente na reportagem pra que isso aconteça.
Ping - O que o jornalista Paulo Markun ainda não fez nos seus anos de carreira e que ainda fará? Existe um projeto pessoal que você ainda não realizou? Ou você nem se preocupa com isso e acha que projeto é coisa de arquiteto e não de jornalista?
Markun - Tem
uma porção de projetos não realizados. Muitos não deram certo ou não foi
possível fazer ou não tive recursos para tal, mas estou sempre inventando um
novo. Recentemente, meu filho e eu discutimos a ideia de fazer uma publicação
sobre cultura digital. A ideia era de que esse mundo da nova mídia, da cultura
digital, da pessoa conectada, pra geração de vocês, é natural, uma extensão da
vida. Mas quando os formadores de opinião, aqueles que decidem mesmo, no máximo,
eles chegam no Facebook, mandam e-mail, olham um site ou outro de notícias. Mas
eles não entendem, não percebem a transformação do mundo em função dessas novas
tecnologias.
A
gente achou que uma alternativa interessante seria fazer uma revista impressa
que falasse disso. Nós tentamos conversar com patrocinadores e apoiadores e
verificamos que dificilmente a gente ia conseguir convencê-los a apoiar um
projeto desses. Esse projeto na verdade custaria muito caro para ser feito com
qualidade e não se viabilizou. Então a gente deixou de lado e partiu pra outras
idéias.
Nesse
momento, estou empenhado em resolver aqueles que estão na minha frente que já
são em quantidade suficiente. Estou trabalhando numa série de documentários de
processo em TV, num projeto de cinco documentários para a TV Câmara, numa série
de entrevistas pro canal Brasil, e ainda num projeto que ainda não tem destino
claro que é uma série de documentários sobre futebol no Brasil. Não quero
mostrar Corinthians, São Paulo, mas um universo de times de futebol. Tem time de
tudo quanto é coisa, de ator; de gente que joga na lama, no Amapá; de
imigrantes, de mulçumano; de religiosos; de gente que joga futebol nas
plataformas de petróleo. A ideia é fazer uma série sobre isso. Além de está
terminando o Brando Retumbante que é o livro que eu tenho que acabar até maio. Estou
atolado de trabalho, de projeto então e acho que isso é uma boa receita para
você ficar com a cabeça ligada aos 60 anos.
Os feitos
Ping - Alguma vez na vida você respondeu
a uma entrevista sem ter que falar sobre o Roda viva? Fale da sua passagem por
lá. Você sente falta de mediar as calorosas e reveladoras entrevistas daquele
programa?
Paulo Markun foi mediador das entrevistas do Roda Viva durante 10 anos. |
Markun - Eu
já dei entrevistas sem ser sobre o Roda viva sim. Geralmente quando estou
falando sobre outros projetos, um livro, etc e tal. Mas muitas delas têm a ver
com o programa. Eu sinto saudade, mas é aquela saudade que já está se
transformando numa coisa tolerável e tranquila de algo que já aconteceu e não
vai acontecer mais.
O
projeto Retrovisor, em que trabalho agora, será de entrevistas com personagens
da história brasileira interpretadas por atores e é, em certo sentido, uma
retomada da ideia do Roda Viva com
outro jeito e uma pegada diferente. O grande barato do programa era porque
durante uma semana eu tinha de me dedicar a um personagem, fosse ele um
escritor ou um personagem do momento político, econômico do país. E essa preparação
era gratificante, porque não era ir lá só ligar a câmera e fazer qualquer
pergunta. Muito embora o mediador tenha um papel diminuto no programa. Ele tem
apenas que trocar a bola ali, fazer com que a dinâmica funcione. Mas justamente
por isso você precisa saber do que se trata e tentar suprir, eventualmente,
quando determinada pergunta não é feita. Ou, muitas vezes, quando eu achava que
ela não era respondida de maneira adequada, voltar à pergunta daquele colega ou
daquela pessoa que está entrevistando o personagem. Foram 10 anos e obviamente
é uma marca na minha atividade profissional muito forte e muito gratificante.
Não acredito que ela volte. Acho que é um rio que passou na minha vida.
Ping - Explique melhor o projeto
Retrovisor. Você falou de história de personagens brasileiros. Como é que vai
ser isso?
Markun - Nós
vamos fazer treze eventos num teatro, provavelmente, num auditório da Biblioteca
Mario de Andrade, em São Paulo. Vou
contracenar com um ator representando um personagem da história brasileira. Por
exemplo, Anita Garibaldi, Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Frei Caneca,
Cláudio Manoel da Costa, Barão de Mauá e assim por diante.
Vou
entrevistar esse cara diante de uma plateia como se a entrevista estivesse
acontecendo no momento mais crítico da vida dele. E as respostas serão baseadas
nas pesquisas históricas que irão sustentar o projeto, mas com algum tipo de
liberdade para que o ator ou atriz improvise na resposta. E não vai ser uma
coisa ensaiada, não é teatro exatamente. A dinâmica será igual a uma entrevista
de televisão então a gente vai tentar saber, por exemplo, por que o barão de
Mauá, que foi o homem mais rico do Império, quebrou. Existe uma bibliografia
sobre esse assunto já disponível que permite restituir as supostas palavras do Barão
de Mauá naquele momento.
Isso
é um evento de uma hora e meia no teatro que vira 26 minutos na televisão e
depois vira DVD e depois vira livro. É um projeto bem legal que já foi aprovado
pela Ancine, já tive algumas conversas com patrocinadores. No segundo semestre,
deve começar. É a minha volta para a televisão como entrevistador só que numa
nova posição porque eu vou estar lá representando eu mesmo, num teatrinho, digamos.
As pesquisas que as biografias de Markun exigiram não são o motivo das suas olheiras profundas |
Ping - Existe alguma ligação entre a
profundidade das pesquisas do teu livro e a profundidade das tuas olheiras?
Markun - Não, acho que não. Às vezes pode ser que a olheira aumente quando estou no fim
do livro. Mas não, tenho olheira mesmo quando eu não estou escrevendo. É de
família.
Ping - Você se dedica muito para fazer teus materiais?
Markun - Eu só termino quando eu fico satisfeito. Por exemplo, esse livro que eu estou
fazendo (Brado Retumbante) eu já reescrevi três vezes.. O Cabeça de Vaca eu fiz
duas versões. O meu querido Vlado também. De modo geral, não sai na primeira
vez porque eu acho que o livro é um processo de apuração da informação, de
afinar realmente para que aquela história esteja bem contada e seja atraente para
ser lida. Muitas vezes, nesse meio caminho, você se perde, você não sabe mais
para onde você está indo.
Muitas
vezes, ou a critica externa é muito importante, de um editor ou de alguém que
participe do projeto ou mesmo a auto crítica, quando você deixa aquele trabalho
de lado um tempo e depois vai ler e perceber que perdeu a embocadura, perdeu o
caminho. Então eu acho normal, eu não sei fazer de outro jeito. Admiro quem é
capaz de fazer muito rapidamente as coisas e sair bom de primeira.
Ping - Consta no teu currículo a implantação
do Pasquim em são Paulo. Como
foi essa etapa da tua carreira?
Markun - Foi, na verdade, uma experiência curta já fora de época em certo sentido. Por
que o pasquim, em São Paulo ,
se não me falha a memória, é de 1986. O auge do Pasquim foi o final dos anos 1960,
começo dos anos 1970 no Rio de Janeiro. Nos anos 1980, ele tinha ficado na mão
do Jaguar, que era cartunista e um dos criadores do jornal. O jornal já estava
derrapando, porque já tinha a abertura política e tal. E ele me procurou em São Paulo querendo fazer
uma espécie de franquia do Pasquim, e foi isso que foi feito.
Durante
um ano a gente conseguiu manter. Éramos três, inicialmente dois jornalistas e
depois entrou o terceiro. Manoel Canabarro ficamos até o final. A gente montou
uma redação interessante de colaboradores. Jô Soares, Carlos Nascimento, Caco
Barcelos, Fernando Moraes, Alberto Dines, enfim, tinha um número de
colaboradores que, de alguma forma, topou escrever naquele momento.
E
esse momento foi coincidente com as eleições para o governo na sucessão da
primeira leva de governadores eleitos pelo voto direto. O primeiro foi o Montoro
e o segundo que foi eleito foi o Quércia. Havia naquela ocasião uma disputa de
quatro nomes do centro para a esquerda. Havia o Paulo Maluf que era a direita,
aí tinha o Antônio Ermírio de Moraes, o Quércia e o Eduardo Suplicy. Esses eram
os principais candidatos ao governo. Então surgiu ali uma polêmica interna
dentro do jornal, entre os colaboradores, entre aqueles que apoiavam um ou
outro. Ninguém apoiava o Maluf, mas todos eram Suplicy ou Quércia ou eram
Antonio Ermírio de Moraes. E isso mobilizou o jornal e o jornal teve uma vida
política curta e interessante nesse período.
Passada
a eleição, ele perdeu o seu significado e tinha dificuldades enormes de
sustentação por falta de anúncio, embora vendesse, nas bancas, mais do que a
revista Veja, em São Paulo. Vendia
bem! Não era aquela coisa absurda, mas como semanário era bom. Foi uma boa
experiência, interessante, que por sorte não terminou muito mal. A partir daí a
gente criou a revista Imprensa, uma espécie de subproduto. Como no jornal as
notícias que mais repercutiam eram as que tinham jornalistas na capa, a gente
acabou fazendo uma revista sobre imprensa, essa revista foi muito bem, continua
até hoje. Nós trabalhamos dois anos, dois sócios saíram, dois ficaram e a
revista segue.
Ping - Você levou a equipe do falecido
Pasquim para a revista Imprensa?
Markun - Na
verdade, o Canabarro e eu que começamos o projeto. Aí se juntaram um jornalista
e um publicitário. Um cara de marketing que está até hoje na Imprensa e alguns
colaboradores e tal. Mas ela era uma outra coisa. A revista era mesmo uma
redação. O Pasquim era um jornal de colaboradores, as pessoas mandavam as
coisas e a partir daí você fazia uma capa e uma matéria mais ou menos engraçada
e tal. E a Imprensa não. A Imprensa era uma revista mensal que tinha a
substância produzida na redação, sempre tratando desse mundo dos jornalistas e
do jornalismo e foi uma boa experiência. Foi legal.
Ping - Você não permaneceu muito tempo
tempo a frente da Fundação Padre Anchieta. O que ocorreu?
Markun - Cumpri o mandado inteiro. O mandato é de três anos. Num certo sentido, é
diferente porque o presidente anterior a mim, Marcos Mendonça, também só ficou
três anos. Normalmente os presidentes ficavam pelo menos dois mandatos lá. Ele
não continuou e eu também não. O que aconteceu foi o que o Secretário da
Cultura, que era o meu chefe, quis ser o presidente da Fundação e diante de uma
vontade dessas eu não tive o que fazer. Não era que eu almejasse e que fosse o
sonho da minha vida. Aquilo aconteceu por um convite e eu achei que podia fazer
alguma coisa. Já no final, eu estava disposto a sair. Houve um pedido do
governador, que era o José Serra, na época, que eu continuasse e esse pedido
não se realizou porque o secretário mudou de ideia e quis ele ser o presidente.
Lamento só o jeito como foi feita a transição, essa coisa não ter sido mais
civilizada. Mas também pra mim foi ótimo não estar lá hoje.
Ping - Por quê?
Markun - Porque
eu acho que é difícil você realizar qualquer coisa numa instituição pública
desse tipo. É muito desgastante, trabalhoso e frustrante. E os projetos meus,
pessoais, e as coisas que eu hoje posso fazer, eu não podia fazer. Quer Eu
abandonei dez anos de Roda Viva, abandonei uma porção de outros projetos para
me dedicar à Fundação. Financeiramente foi um prejuízo e profissionalmente não
foi um avanço. Eu não ganhei nada com isso. Foram três anos marchando no mesmo
lugar. Mas passou.
As escolhas
Ping - Tua
obra literária tem forte ligação com Santa Catarina. Você escreveu sobre Anita
Garibaldi, que foi uma revolucionária aqui, O espanhol Cabeza de Vaca, que
governou Santa Catarina, um livro sobre a história da Unisul, que é uma
universidade catarinense e como se não bastasse isso tudo, a vista da tua casa
é a beira-mar de Florianópolis. De onde vem esse amor?
Eu só queria ouvir a entrevista |
Ping - Sem pedir licença, um mosquito perfura a perna da fotógrafa e Markun pergunta: você
quer um Autan da vida? Tem muito mosquito aí.
Tímida, a moça
responde: um pouquinho, mas está tudo certo!
Ping - Há que se ressatar! O Estopim não é partocinado pelo inseticida que Markun ofereceu.
Retomamos a
entrevista:
Markun - Quando os meninos eram pequenos a gente vinha sempre passar as férias em Bombas, Bombinhas, Porto Belo. E a Tatiana, minha
mulher, era bailarina, hoje, é cantora e compositora e a gente viajava
muito e tinha uma vida muito corrida. Decidimos parar um ano, isso em 1989 e
vir pra Floripa porque nem Bombas, nem Bombinhas, nem Porto Belo tinha muito
estrutura de educação pras crianças. Na época a minha filha mais velha tinha
doze anos, e o Pedro tinha uns três anos, o mais novo não tinha nem nascido e nasceu
aqui.
Aí
passamos um ano aqui em Cacupé, compramos esse terreno, construímos essa casa.
A gente vinha todo o verão sempre com a ideia de um dia fixar a residência
aqui, por causa das vantagens e das comodidades que a Ilha tem, enfim, por
causa do visual, do clima e isso acabou acontecendo em 1998. Quando eu sai da
Globo para a TV Cultura para fazer o Roda Viva. Desde então eu venho mantendo
esse esquema. Passo um tempo aqui, um tempo em São Paulo , mas a casa da
gente é aqui.
E
aí a decorrência natural foi tentar se inserir na cidade e isso envolveu essa
coisa de fazer a biografia da Anita, depois veio o convite da Unisul para
escrever a história da universidade. Em seguida, a gente fez um livro sobre a
legalidade, no Rio Grande do Sul, que um livro sobre a luta para a posse do
Jango, quando o Jânio Quadros renunciou e enfim, alguns dos documentários que
eu fiz na vida, editei aqui. Estou sempre buscando histórias de Santa Catarina,
que eu acho que tem histórias interessantes e muitas vezes pouco conhecidas no
resto do Brasil.
Ping - Você é um jovem senhor! O projeto
em que estás debruçado nesse momento, o Brado Retumbante, parece mais difícil do
que os anteriores por força da idade ou isso ainda não te atrapalha?
Markun - Não, acho que não. Esse não é o problema.
Ping - Você está encontrando que
problemas então?
Markun - Na
verdade, como ele percorre um período de história grande, em vez de eu focar do
período do golpe até a campanha das diretas, que seriam vinte anos, 64-84, eu
voltei para 1922, quando o Brizola nasceu. E aí, condensar todas essas
informações é difícil.
É
um período que foi mais difícil pra mim, porque é a parte que eu não conhecia
da história. Por exemplo, eu cheguei agora em 1969, eu tenho que chegar até 1984.
E é mais fácil pra mim por que eu vivi esse período de perto. Mas, para mim,
antes de 1964, tudo era novidade. Então para escrever um parágrafo eu precisava
pesquisar muito para ter certeza de que aquilo que eu estava falando, que eu não
estava simplificando demais, ou, de alguma forma, vendendo uma coisa que não
existiu. Isso é trabalhoso. Não sinto dificuldade por causa da idade não.
Ping - Você começou esse projeto através
de um site não é?
Markun - Comecei,
na verdade, em 1986 com uma série de gravada na Unicamp. Na época, a ideia era
entrevistar os personagens que muito provavelmente iam se enfrentar na arena
política, em 1989, na primeira eleição direta para Presidente da República.
Os
personagens que estavam circulando eram Ulysses, Lula, Brizola, Gabeira, FHC,
Mário Covas e outros. O Collor, que veio a ser o presidente, nessa época, era
um personagem secundário, não tinha projeção nacional e não participou do
projeto. Mas essa é origem. Acabei parando ele e retomando em 2007, quando eu
estava saindo da TV Cultura.
Eu
queria fazer um livro e não um site. Mas coloquei o site no ar para antes para
recolher as histórias das pessoas. Consegui algumas, mas não foi exatamente o que
eu imaginava. Enfim, estou terminado o livro, vou retomar o site e, depois,
fazer um documentário em 2014. E terminarei o livro até maio desse ano.
Ping - Por que você acredita que não
tenha conseguido tantos comentários no site do Brado Retumbante?
Markun - A
minha geração não tem tanta intimidade para entrar no site e escrever. E a
geração mais jovem que faz isso com naturalidade não tem o que dizer, porque
não viveu. Acho que quando o livro sair e isso voltar a ser assunto, eu vou
conseguir mais depoimentos dessa época.
O
barato da campanha das diretas é que ela
foi realmente uma mobilização de massas no Brasil, uma das raras. Nessa
não tinha importância o personagem que estava no palanque. O importante era a
plateia. Se você perguntar pra qualquer pessoa com mais de 40 anos, essa pessoa
vai dizer onde ela estava. As pessoas lembram porque foi um episódio muito
marcante na vida delas.
Você
pretende lançar esse livro em 2014 e você falou da sua preocupação de mostrar a
massa. Em 2014, o Brasil será o país sede da Copa do Mundo e o evento
certamente causará um bafafá aqui na massa inclusive. Você acha que isso pode
atrapalhar a repercussão do projeto?
Não
dá pra comprar! A Copa do Mundo é um evento de multidões e todo mundo vai se
mobilizar. Agora, a história das Diretas ela vai, muito provavelmente, se for
bom o resultado, será uma relembrança para aquelas pessoas que viveram e de
descoberta pra quem não viveu. Pra entender que há 30 anos aconteceu isso no
Brasil e que o país era desse jeito e que isso tem a ver com uma história que
não nasceu da noite por dia.
O
desconhecimento do processo histórico produz a ideia de que de repente a coisa
aconteceu. Por trás disso tem um processo de acumulação, de conhecimento, de
força, de experiência, de erros e acertos. Eu estava agora trabalhando num
capítulo delicado e difícil, que é sobre como se deu a luta armada no Brasil.
Não existe nenhuma estatística confiável sobre a luta armada, nem sobre o
número de presos políticos. Nem mesmo os tais desaparecidos políticos, porque
uns contam de um jeito e outro de outro. É difícil contabilizar, mas todas
essas ações armadas não deram resultado, porque não mudaram a ditadura. O que
derrotou a ditadura foi a ação de grupos como as igrejas, o partido comunista,
o MDB, o movimento estudantil. Isso levou ao enfraquecimento da ditadura. É
esse processo que eu quero mostrar. Os pedacinhos dos cacos que formaram o
grande mosaico.
Ping - Santa catarina, biografias históricas, lutas do
UFC, teclados Qwerty, documentários são coisas que você ama. O que falta na
lista?
Markun - As
lutas do UFC é um pecado na minha vida. Pra falar a verdade nem tenho assistido
mais, porque eu gostava mais quando era menos pop. Virou uma máquina de faze dinheiro
e não tenho visto mais.
Veleiro,
sítio, relação com o campo, cozinhar entram na lista. Eu só não gosto de dormir
tarde. E também tem coisas que acho que já foram importantes e que não são mais
como circular na sociedade. Isso tem que ter um pouco para que os projetos
aconteçam, mas isso não combina com escrever livro, por exemplo. Escrever é um
negócio solitário e que você tem que ter muita dedicação.
Ping - Você disse que
jornalista gosta de colecionar histórias. Conte para nós uma história de
jornalista. Das boas e sobre o que preferir. Qualquer coisa:
Markun - Vou
contar uma que vi na Serra Catarinense. Uma pequena cidade de 800 mil
habitantes de repente vi três pessoas fazendo cooper na pracinha principal da
cidade. Nessa mesma cidade, há anos atrás, na Copa do Mundo, eu passei pelo
centro e tinha um churrasco acontecendo no posto de gasolina. Comecei a pensar
sobre o que faz as pessoas numa cidade dessas no campo ter esse tipo de
atitude. Essa é a cópia da atitude urbana e tem a ver com a televisão. Tem a
ver com a maneira que a televisão, infelizmente, dissemina as práticas da
sociedade urbana para os lugares mais inacreditáveis.
As
cidades estão perdendo sua identidade por causa dessa sociedade conectada,
contemporânea. Não quero dizer que isso é um defeito, porque a própria internet
proporciona essa sobrevivência das formas culturais à margem da máquina que a
mídia uniformiza na gente, mas é curioso você pensar porque que as pessoas não
vão correr na trilha, por exemplo. Elas correm no parque como quem corre na
Beira-mar Norte.
Por trás das câmeras, Paulo Markun também faz história. Diretor de
oito documentários, entre eles dois sobre o período da ditadura Militar no
Brasil, ele fala sobre o processo de produção, suas escolhas e um possível
futuro para os documentários.
Ping - Como ocorre o processo de pesquisa
e produção no caso dos documentários? Quais as diferenças técnicas dos
documentários e das entrevistas para a televisão?
Markun - No caso da entrevista tem um mínimo ponto comum: é ideal que você procure saber
o que já existe sobre o assunto tanto na entrevista quanto no documentário. Agora, são
coisas diferentes porque o grau de incerteza num documentário é muito maior.
Acabo de voltar do Amazonas e do interior do Sergipe pra filmar maloca de
índio, palafita de ribeirinho e casa de sertanejo. A gente tinha algumas
informações sobre isso, pesquisadas na internet e uma produção local que tinha
que garantir que eu conseguiria ir lá filmar, mas o que a gente ia fazer iria
depender do desenvolvimento ali naquele momento. Agora o que ia acontecer lá.
No caso de uma entrevista, você já sabe mais ou menos o que vai encontrar, pois
o cara conversou com você antes, é outro jogo.
O
processo de pesquisa, no meu caso, ele parte de uma premissa que é a
possibilidade de concretizar esse documentário. Eu adoraria fazer dezenas de
documentários sobre os assuntos mais variados possíveis, porém muitos são
impraticáveis porque custam caro.
Ping - Você dirigiu dois
documentários sobre a Ditadura militar no Brasil. Ambos têm enfoque no ano de
1968, quando o Ai-5 foi instituído, dando plenos poderes aos militares. Essa
escolha foi influenciada pela sua vivência pessoal nos anos de chumbo? E qual a
importância que esses dois documentários têm para a memória do país?
Markun - Certamente. Mas não só. Em 1988, ia fazer 20 anos que tinha acontecido o
movimento estudantil. E eu estava como colaborador da TV Cultura e eu propus a
eles um documentário sobre 1968. Como a TV tinha pouco recurso, foi uma mesa
redonda com alguns personagens. E misturei imagens de arquivos e algumas entrevistas.
Mas obvio que também tem a ver que eu participei das passeatas de 68 e de
alguma forma sofri as consequências do AI-5 como tanta gente da minha geração.
Ping - Qual a relevância histórica que
você acha que esses dois documentários têm para a memória do país?
Markun - Essa coisa de achar que o que você faz é muito importante, é um pouco
exagerado. No caso de 1968, era uma tentativa de falar daquele assunto que as
pessoas já não falavam tanto 20 anos depois. E no caso do AI-5 é interessante
porque mostra um momento em que o parlamento brasileiro foi importante. Foi a
sua afirmação, mesmo sabendo que aquilo poderia dar errado, porque poderia
haver uma represália do governo.
Ping - Você produziu um
documentário sobre o Timor Leste. De onde veio seu interesse para falar dessa
região? Por que, por exemplo, não escolheu o Tibet?
Markun - Tudo
nas minhas escolhas tem a ver com a oportunidade. O presidente do Timor foi a
Roda Viva, quando ele começou a contar as histórias, pensei que havia um documentário
a ser feito. Eu queria mostrar o que a ONU fazia naquele momento lá. Pensei:
agora que eu o conheci, talvez eu consiga autorização pra ir lá. Como nunca
ninguém do Tibet foi ao Roda Viva,
talvez se tivesse ido eu me mobilizasse pra fazer isso, porque veria a possibilidade
efetiva de realizar.
Ping - Por fim, quero lhe
perguntar sobre algo que enxergo na sociedade brasileira hoje. Temos algo
chamado esquecimento histórico, ou seja, não contextualizamos os fatos e me
parece que o que acontece hoje, não terá mais relevância nenhuma amanhã. Você
acredita que os documentários têm papel importante na preservação da nossa
historia?
Markun - Sim. Hoje, você tem uma realidade que a gente ainda não consegue avaliar o que
vai acontecer. Todas as pessoas têm uma câmera. Todos os eventos e atos podem e
muitos deles são registrados por milhares de pessoas ao mesmo tempo. A
internet permite que documentos sobre determinado assunto fiquem a disposição
de quem quiser pesquisar. A que lugar vamos chegar, no caso da preservação da história,
no futuro, não dá pra saber, acho que será melhor do que era antes.
Em
relação ao registro histórico, da chegada dos portugueses ao Brasil, só há as
versões oficiais da história. Não temos a versão dos índios, por exemplo. Hoje,
se você vai registrar um evento você tem a visão de um, de outro, de mais outro
e vai ser uma dificuldade danada contar essa história pra frente, mas as fontes
são muito mais variadas e muito mais vivas.
Imagina
se os índios tivessem uma câmera? Acontece que essas coisas fantásticas como o
descobrimento do novo mundo não existem mais, já passaram. Por outro lado,
temos as transformações que estão acontecendo na sociedade brasileira, o fim de
certos hábitos e comportamentos, o surgimento de outros. O predomínio de
determinadas formas. Então acho que tem muita história pra contar nos
documentárias ainda e muita história pra fazer.
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