domingo, 27 de janeiro de 2013

Comércio das cabeças

Cheguei cedo à feira das cabeças. Várias delas estavam empaladas, como fizera o príncipe Vlad, o empalador, aos invasores turcos. Vlad mandava atravessar os corpos de seus inimigos com uma estaca, através de toda a coluna; deu-se assim origem a lenda de Drácula. No comércio das cabeças, só as cabeças, já decapitadas, eram empaladas. Separadas por funções exercidas, mantinham suas características como quando ainda estavam grudadas nos pescoços de seus donos. Os vendedores se agitavam cada qual com sua maneira de chamar a atenção dos clientes, na tentativa de convencer o freguês de levar alguma pra casa. As mais brilhantes mentes já pensantes da história se destacavam: “Einstein uma barganha! Da Vinci em promoção! Sigmund Freud baratinho!” - se ouviam os gritos por todos os lados.

Na primeira seção do comércio das cabeças se encontravam os revolucionários. Karl Marx era exposto na frente como a melhor opção do vendedor, que prometia que o velho judeu ainda tinha muitas verdades para declarar.

Pergunto se a cabeça estava cara: - Chiii, não fale alto - me responde o vendedor. - Ele não pode saber que está à venda. Fica irritado de saber que suas idéias acabaram num mercado capitalista. Decidiu me fazer uma demonstração que Marx continuava porreta. Com um forte cutucão com uma bengala na testa de Marx, o vendedor acorda a cabeça empalada: – Não é a consciência do homem que lhe determina o ser, mas, ao contrário, o seu ser social que lhe determina a consciência - responde Marx ao cutucão, no mesmo tempo que abriu os olhos e fixou-os em mim. Apreensivo, respondi que minha consciência era determinada pelas boas intenções, e, a partir dessa perspectiva, toda minha existência era concedida. – O caminho do inferno está pavimentado de boas intenções - me respondeu Marx com os olhos mais esbugalhados ainda.

Desisti de adquirir a cabeça de Marx, percebendo que ainda continuava pessimista demais.

Segui para a próxima banca, na seção dos gênios da pintura. Entre cabeças espalhadas como repolhos expostos numa feira de domingo, encontro a cabeça de Leonardo Da Vinci. O sangue ainda corria fresco dos tendões e músculos que um dia foram ligados ao pescoço: - Este é dos bons - incentiva-me o vendedor. – Guarda diversos segredos consigo.

Agarrando os cabelos, o feirante ergue o crânio do pintor e enlaça-o numa corda pendurada ao teto da barraca. Um balde cheio de água é esvaziado na cara de Da Vinci para lhe trazer de novo a vida. – Procure com sabedoria, e descobrirá o segredo do Santo Graal no afresco que pintei sobre a Última Ceia - diz com ar de mistério o gênio inventor. Desconfio das palavras do mestre e retruco que não acreditava na historinha criada por Dan Brown, no livro que revelara o seu “código”. Na mesma hora, sobre várias outras cabeças amontoadas dentro de um cesto da barraca ao lado, grita alto uma voz: – FOI ELE QUEM ME REVELOU.

Fiquei arrepiado ao ver Dan Brown me lançar um olhar surtado, seus olhos pareciam alucinados, envolvidos numa eterna tentativa de provar um segredo obscuro.

O lugar começou a me causar náuseas. Andei um pouco e virei numa esquina, a sensação de desespero me dizia que algo não ia bem. Me deparei com a cabeça de Raul Seixas, que me encarou e cantou uma música que contava uma história, que era mais ou menos assim:

“Eu quero é saber o que você estava pensando, Eu avalio o preço me baseando no nível mental Que você anda por aí usando, E aí eu lhe digo o preço que sua cabeça agora está custando Minha cabeça caída, solta no chão Eu vi meu corpo sem ela pela primeira e última vez... Metrô Linha 743 Jogaram minha cabeça oca no lixo da cozinha E eu era agora um cérebro, um cérebro vivo à vinagrete”

Ao terminar entoou uma risada macabra. – Ahahahahah, Paulo Coelho me paga... Finalizou o cantor.

Imaginei que as inúmeras drogas apresentadas a Raul pelo místico escritor deixaram um certo remorso na mente do cantor e compositor.

Não agüentava mais, aquilo parecia um pesadelo. Tentei correr para achar a saída daquele lugar. Na estante de músicos, pergunto à cabeça de Ludvig van Beethoven como escapar daquele labirinto de crânios falantes. Porém, não obtive resposta. Logicamente o músico continuava surdo, com o semblante sério, cabelos despenteados, olhos fechados, numa eterna composição musical dentro da sua mente brilhante: Tam Tam Tam Tam...

Passei por Dali, Lacan, Michelangelo, Charles Darwin; Shakespeare encarava o esqueleto de um crânio e perguntava se deveria ser ou não ser... Na área reservada aos inúmeros franceses da revolução, encontrei Luís XVI e Maria Antonieta afogando suas mágoas num choro incontido. E tinha até Lampião e Maria Bonita na barraca que fazia liquidações dos que foram liquidados.

Então, tudo começou a girar. Já não compreendia onde estava e perdi os sentidos. Meu corpo não respondia mais aos meus comandos. De repente senti uma forte pancada na cabeça e desacordei.

Um jato de água jorrado em meu rosto me trouxe de volta à lucidez. Acordei e demorei pra recuperar os sentidos; não sei quanto tempo havia passado. Uma terrível dor na cabeça me fez sentir a angústia novamente. Tentei me mover, mas minhas pernas e todo meu corpo não responderam.

Abro bem os olhos e vejo uma pessoa me encarar e fazer uma pergunta que fez o mundo desabar sobre mim: - Quanto custa?

Minha cabeça empalada no comércio das cabeças...

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2 comentários:

Heloísa Apolinário Testoni disse...

Parabéns Ricardo, o texto é envolvente e muito interessante. Excelente!!

Anônimo disse...

Muito obrigado, Heloísa!!
Continue acompanhando o Estopim.
Um grande abraço

Ricardo