sábado, 26 de janeiro de 2013

Entre batom e rímel, a ex-felicidade

Crônica de um café da manhã de segunda-feira

O problema – e, quem diria, a solução - é o fato de a felicidade beirar e nunca aconchegar-se sobre nossas costas cansadas e queimadas de tanto sol e bronzeadores. Saquismo. Há um esgotamento desta necessidade desenfreada de ser melhor que os outros, de estar por cima e principalmente: a sede por criticar e julgar os outros. Nesta crônica, você vai cair no café da manhã de Odete: a mulher moribunda que estava cansada de tentar ser a melhor.


Segunda-feira de um ano qualquer

Você acorda de manhã com a mesma cara de bunda. Escova os dentes se olhando no espelho e vendo como envelheceu. Lamenta e pensa em tomar uma atitude, mas não age para mudar há dez anos. Passa pela sala e vê o marido deprimido assistindo qualquer coisa que não seja olhar para sua cara. Você faz o café, liga o rádio na estação de notícias e enquanto digere seu pão, fica com o olhar fixo na embalagem amarela da margarina com sua família feliz.

Você acha o cara bonito. Escuta as desgraças do rádio na voz do locutor sexy e jura procurar na internet o nome dele para finalmente descobrir seu rosto. Lava a xícara de café e percebe que não estava mais prestando atenção no rádio. Precisa ir ao banheiro, café de barriga vazia lhe dá má digestão. Passa pela sala e vê o marido moribundo. Pensa porquê diabos ficou com ele, enquanto havia o mauricinho perfeito e rico que graças ao bom senhor olhou para você. Até hoje se pergunta como foi tão burra.

Depois de usar o banheiro para suas necessidades básicas, aproveita para tomar aquele banho rápido da manhã. Tem preguiça de lavar-se logo cedo, mas o cheiro bom e a leveza lhe ganham em argumentos. Sai com uma sensação de alívio e o desejo de enfrentar o mundo. Isso acaba no segundo seguinte.

Você pensa no trabalho e desanima de constatar a quantidade de processos que fará no decorrer do expediente. Senta na cama e fica se olhando no espelho do guarda-roupa. Faz uma meditação espontânea com o olhar fixo no rodapé do quarto. Pronto, a vestimenta do dia está na sua mente. Enquanto escarafuncha seu roupeiro, descobre que a famigerada ideia está no cesto de roupas sujas. Sua ambição cai por terra e seu dia não será mais o mesmo.

Olha pela janela e pensa em usar vestido. Não se depilou e nem está com o pé feito para usar sandálias. Seu dia já está uma merda. Pensa na hipótese de se depilar de última hora, mas lembra que está cheia do café da manhã e o vestido marcará sua barriga. Esquece o vestido. Olhando para as roupas, ainda sentada na cama, observa algum movimento ao seu lado direito. Vira e percebe que o relógio marca novo horário.

Bate uma agonia interna. Precisa se apressar. Pensa como as mulheres bonitas devem ser felizes: não se preocupam com os cabelos e nem em passar tanta maquiagem. Oras, são bonitas! Imagina que se sua vida fosse assim, seria bem mais contente. Até mesmo seus relacionamentos amorosos não acabariam em depressão. Enquanto procura uma lingerie que não marque e desfaça seus restos de curvas da juventude, lembra como se pintava mesmo estando em casa. Tenta entender aonde foram parar as cores e sabores de seus vinte anos. Desiste da ideia, já estava deprimida.

Pensa na surrada calça jeans que achata sua bunda, mas contrapõe com a cor e o conforto. Vai essa mesmo. Pega o sutiã mais apertado que tem para dar impressão de que seus seios são maiores e bonitos. Tudo isso porque vai colocar uma blusa em decote V. Olha-se no espelho e não acha nada de extraordinário. Tenta imaginar como é a mente das mulheres bonitas para saberem tantas combinações elegantes e sedutoras.

É hora da maquiagem. Resolve não colocar a lente para miopia, não quer se chatear com a visão do espelho. Fica no ponto estratégico da luz do banheiro, enquanto passa um protetor solar no rosto. Acha essa parte um saco e já está calculando qual a cor do batom do dia. Levanta a visão e vê o cabelo uma farofa. Pega um creme, passa nas mãos com a esperança de que as frases positivas da embalagem se confirmem pelo menos uma vez na vida. Mas seu cabelo não está brilhante e sem frizz. Você faz um coque, tentando esquecer que ele existe por um curto período. Olha para seu estojo e percebe que o pó compacto está no fim. Sua auto estima estará morta se não comprar um antes do final do dia.

Enquanto está em meio ao processo da pintura, percebe o marido passando para o quarto. Pensa em como ele pode ser tão tranquilo faltando pouco para sair. Avisa-o que ainda nem tomou café, mas ele afirma que tomará. Seu sangue ferve com a calmaria do dito cujo. Na sua mente não dará tempo, com toda certeza! Vai atrás dele com o rosto cheio de corretivo. Fala meia dúzia de coisas desagradáveis e percebe que não surtiu o efeito desejado. Volta ao banheiro em nervos. Termina de passar o corretivo e o pó.

Começa a árdua tarefa de não borrar o rímel. Concentrada para não espirrar enquanto penteia seus cílios, vê o marido entrar no banheiro e dar ligeiras encostadas. Você está na frente da privada e ele precisa fazer xixi. Abaixa a visão e sai em direção ao espelho do quarto. Percebe que borrou o rímel. Coça a cabeça de irritação. Seu dia está uma porcaria de verdade.

Termina seu ciclo, pega a bolsa e vê a imagem de uma mulher bem mais ou menos. Imagina que devem ter piores, mas que também não está nem perto de ser a melhor.

Ah, é mesmo, a Odete estava cansada de tentar ser a melhor.


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