quinta-feira, 29 de novembro de 2012

O velhote que queria trocar o nome

Acaba de amanhecer o dia e os trabalhadores começam desde já a exercer sua rotina magistral. Eles se levantam, limpam a remela do olhos, talvez alimentam-se; os mais limpinhos tomam banho e depois tiram o carro da garagem, ou aguardam no ponto de ônibus a condução para o seu dia de trabalho. Essa é a espetacular largada das oito horas que eles vendem aos seus patrões, exploradores vorazes que, covardemente enriquecem as custas de seus pobres e ignorantes empregados.

Falemos da história do Brasil. O país que foi presidido por muitos anos por um gaúcho chamado Getúlio Vargas. Foi pela força de seus feitos em prol dos trabalhadores que ele ficou conhecido como o pai dos pobres. Que grande sacanagem. Que tremendo golpe social. Há também uma velha máxima que mora na casa dos ditados. Diz-se por aí que o trabalho dignifica o homem. Esforço-me para não gargalhar diante disso. E me nego a ingressar nessa classe serviçal que ama apenas a sexta-feira, por ser esse o dia mais próximo do final de semana. Imbecis.

Tenho apenas um sonho na vida. Papai e mamãe estavam com falta de criatividade quando decidiram me batizar com esse nome e eu seria o mais feliz dos mortais se conseguisse trocá-lo. Peço que o leitor não faça chacota ao ler essas minhas confidências. O que contarei nos parágrafos seguintes é o drama da minha vida. Tristeza que a mim foi dada antes mesmo do choro primeiro que soltei nas mãos dos médicos depois de sair, com muito custo, do ventre materno.

Queria antes, por obséquio, abusar em mais uns trechinhos da sua atenção para tratar um bocadinho mais dessas questões existencialistas que por certo, dizem respeito a todo leitor, pois se me lê, é porque vive e se vive, existe. É que acaba de me fazer vibrar o tímpano o belo canto de um pássaro e, por conseguinte, fico ainda mais acabrunhado com o senhor nosso Deus que em vez de nos deixar ser bicho nos fez ser humano. E completando a burrada deu-nos uma cabeça e um cérebro com a capacidade para pensar. Creio que se for o Senhor nosso Deus punitivo dar-me-á nos próximos dias uma doença para tirar-me a razão, visto que reclamo da sua concessão à raça humana.

Não quero ser mal interpretado por Deus. E a verdade é que ainda não terminei o pensamento. Se o Senhor já me leu até aqui, peço que me leia um pouco mais, pois tentarei explicar-me se ainda houver tempo e linhas nesta publicação: o Senhor deu-nos o direito de pensar e, pensando bem, essa não é a maior das suas besteiras, pois ele, deu a nós também o livre-arbítrio e esse gesto impensado é sim grave, porque quando o homem pode fazer o que bem entende de seu pensamento acaba pensando em nada importante, ou o que é pior, pensando em nada.

Encerrada a divagação, é hora de confessar aos olhos do leitor o que tanto me acabrunha há 59 anos, os mesmos anos que tenho de vida. Disse antes que meus pais não estavam inspirados quando mo fizeram. E essa é tanta uma verdade que deram a mim um nome chinfrim, medíocre, ridículo, esdrúxulo e mesmo que eu imputasse a esse nome todos os adjetivos pejorativos presentes no dicionário ainda não estaria completamente qualificado.

Não estou enrolando. É difícil tornar público, ainda mais em página de livro, o meu nomezinho. Essa vergonha é que me impede de ir até um cartório a fim de solicitar a mudança desse empecilho impresso nos documentos da minha nascença. Mas um fato recente, que é a morte de mamãe, fez-me renovar esse desejo antigo. Eu não queria ofendê-la e resolvi suportar o peso dessa indecência até o dia de seu funeral. Mas agora que ela vive a sete palmos da terra ressurgem minhas mórbidas esperanças.

No cartório da cidade, peguei a senha 66 e fui chamado por uma loura que atendia no guichê 6. Era o prenúncio do meu azar. Não precisei dizer meu nome a moça. Ela pode lê-lo na carteira de identidade. Contei-lhe meu desejo. Ela comentou que um sujeito havia passado por ali há três dias com um semelhante pedido e conseguiu mudar o nome. Ele chamava-se Osama Bin Laden da Silveira.

Minha ansiedade aumentou quando ela disse que há treze anos um menino foi registrado com o nome de Michael Osório Jackson naquele cartório. Perguntei quanto tempo mais demoraria o trâmite e ela me disse que mais tardar dali a um mês eu poderia apresentar-me com um nome novo. No segundo seguinte, ela pegou-me desprevenido querendo saber como eu queria me chamar. Preocupado com uma pedra de gelo, vi-me a frente de um iceberg. E agora, resolvido um problema eu tinha uma nova dor de cabeça. Que nome? Dei as costas à moça e fui para casa com meu novo drama de ser humano.

Se mamãe pode dar a mim o nome de personagem que encontrou em romance erótico pensei em me dar um nome de algum ídolo. Se eu pegasse o Albert do Einstein seria um exagero. Talvez o Marlon do Brando, mas ficaria feio Marlon de Jesus. Isaac Jesus, roubando o primeiro nome do Newton não colaria. Tentei alguma coisa mais recente como Steve do Jobs, mas soaria piegas. Chorei. Cheguei a lembrar de uma outra máxima: o que não tem remédio, remediado está. Era hora de velho ir para cama. Deitei e dormi.

Sonhei preto. Acordei. Lavei a remela da cara. Agradeci porque não teria que começar a rotina dos trabalhadores assalariados e acordei bastante feliz por isso. Olhei para o espelho do banheiro com o rosto enxugado e a toalha nas mãos. No reflexo enxerguei aquela minha cara de Vinicius. Ou seria uma cara de Lucas? Cristian, Walisson, Igor, Ricardo? Uma cara de Marcelo, Hiago, Estevão, Marcos, João, João! João?! Há Joões demais. Não posso ter nome de mais um.

Tenho que agradecer a Deus. Lembrei-me da história do livre-arbítrio. Poucas pessoas tiveram o privilégio de escolher seu nome. Os seres humanos tão racionais, tão cheios de si não enxergam sua rotina de trabalhadorezinhos pobretona. Eles têm tapadeiras no cérebro e não raciocinam o impedimento que sua liberdade sofre por não escolher o próprio nome, ou melhor, o nome próprio.

Também, cheguei a conclusão de que devo ser eternamente grato a mamãe por ter me dado nome tão, tão, tão. Deixa pra lá. Não fosse essa vergonha eu jamais teria o direito de trocá-lo. Caso me chama-se Nícolas, ou David, ou Horácio eu não perceberia a injustiça de não escolher o nome que vai escrito no concreto da minha lápide.

É o meu máximo êxtase. Um frenesi. O pecado de minha mãe caiu-me salvador. Salvador. Salvador. Recolhi os documentos todos e corri ao cartório para salvar-me da minha cruz quase sexagenária. Eu não seria mais eu. Eu não queria mais ser aquela homenagem impensada da minha mãe. Eu não seria o carregador de um fardo macabro. Eu seria Salvador de Jesus.

A moça do cartório estava em outro balcão. O de número sete. Se seis é meu número do azar, sete é meu número de sorte e eu estava entendendo que finalmente livrar-me-ia desse fardo. Depois de dizer a moça o nome escolhido, ela não me escondeu a cara de decepção. Para ela, eu pretendia trocar seis por meia dúzia e, nos últimos minutos da minha antiga história, pedi a ela que não se metesse no meu futuro. Salvador de Jesus. E se Deus me permitir, estou aberto para dar ainda mais conselhos ao seu filho sobre a existência do homem na Terra, pois vivo na pele a tragédia que é ser humano, enquanto Ele assiste a tudo sobre todos e deve ser uma confusão danada Sê-lo.

Salvador de Jesus

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