domingo, 28 de outubro de 2012

Os segredos do Alemão

Resolvi escrever sobre uma época da qual não fui testemunha. Uma época, porém, de alguma forma, rica em minha memória. Os ventos da segunda guerra mundial sopraram para o Brasil algumas raridades na época. Fomos colonizados pelos mais diferentes tipos de nacionalidades, alguns costumes peculiarmente exóticos para os brasileiros. Os diferentes hábitos trazidos junto com as bagagens surradas nos lotados navios causavam estranheza na época. E uma personalidade que narro aqui pode ser a mais estranha de todas.

Volto ao meu tempo de criança: lembro-me do chão batido de terra, da poeira que levantava e formava uma névoa avermelhada, ofuscando a visão. A terra era roxa, boa para o plantio. Os bezerros berravam para suas mães na insaciável sede do leite. As galinhas chocavam os ovos por entre os bambuzais, e a garotada, de facão amarrado no pé, fazia questão de roubar e tomar ali mesmo, cru. Era as terras do meu avô, o seu Jorge, imensas terras para meu pequenino olhar. Terras que bem antes de eu nascer já abrigava incríveis histórias do pós-guerra.

Na década de 50, a loja de seu Jorge era na esquina da mais movimentada – por carroças, charretes e andarilhos – rua da cidade. E nada mais conveniente para uma pacata cidade do interior de São Paulo, de nome Nova Europa, abrigar os foragidos da guerra. Os imigrantes eram muitos: italianos, alemães, libaneses, japoneses. Estrangeiros em busca de trabalho, dinheiro, plantio para sobrevivência. E na derrota do Eixo, muitos dos asseclas de Hitler conseguiram escapar ilesos. O destino de muitos, segundo estudos, foi a América Latina. A maioria debandou em submarinos; há suspeitas que o próprio Führer refugiou-se na Argentina.

Dentre os fugitivos estava um médico cientista de expressivos olhos azuis. Seu nome era Josef Mengele, definitivamente um sádico psicopata. Suas pavorosas experiências com seres humanos romperam a barreira da insanidade e lhe renderam o apelido de “Anjo da Morte”. Mengele costumava amputar os braços de suas vítimas e tentava reimplanta-los em outra. O cenário era grotesco. Em seu laboratório, no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, havia galões de gelo e de água fervente, dos quais ele submergia as “cobaias” ainda vivas, hora no quente, hora no frio, para auscultar, com seu termômetro e estetoscópio, a resistência do corpo humano. Coisa macabra. Os gêmeos eram os que mais sofriam em suas mãos, os recém-nascidos não tinham valor algum, eram descartados como pontas de cigarro. A história já sabe que por muito tempo Mengele viveu em Embu, também cidade do interior paulista, mas, o que poucos sabem, foi sua passagem pela região de Nova Europa.

Sua vida particular era pouco conhecida, utilizava diversos documentos falsos. Os moradores mal sabiam de sua existência e acreditavam que era veterinário. E Mengele sabia mesmo cuidar de animais, motivo fundamental de sua vida cruzar com a de seu Jorge.

Cinzento era o cavalo Árabe de meu avô. Um garanhão de temperamento febril e imprevisível. Poucos conseguiam monta-lo e a habilidade requerida para

domar a fera era de verdadeiro peão de boiadeiro. O meio necessário para acalma-lo eram as longas cavalgadas – cansava o animal e tornava-o menos arisco. Em uma dessas cavalgadas Cinzento passou mal, arriou as patas entre os pés de abacate e de laranja. Seu Jorge, ainda jovem e ágil, pulou do lombo; ficou estarrecido, não queria perder aquela beleza de bicho. Alisou um pouco o pelo a procura de alguma pista de ferimento ou inchaço, talvez picada de cobra. A boca de Cinzento espumava e a respiração era forçada. O fim da estrada para o alazão parecia inevitável.

Ao tirar o chapéu e enxugar o suor da testa devido ao escaldante calor, seu Jorge ergueu o olhar e avistou, para sua surpresa, uma figura de presença intensa a poucos metros de distância. Vestia um enorme sobretudo, chapéu de veludo e usava um volumoso bigode; a cinta da espingarda corria sobre seu peito. O homem desceu de seu também belo cavalo e ofereceu ajuda. Sem dizer nada, seu Jorge apontou com a mão em sinal de permissão, fixando-se no olhar sombrio, profundo e vazio do estrangeiro. Bastou alguns segundos, após uma breve análise, para a resposta curta e direta em português forçado e arrastado: - “Precisa só descansar, ficar bem logo”. Desconfiado e sem resposta, meu avô acenou com a cabeça em sinal de compreensão e agradecimento. A longa capa do casaco do homem já fazia seu movimento sobre o outro cavalo, parecendo asas de morcego. Ambos acenaram com a cabeça ao mesmo tempo e as costas do estranho já eram avistadas.

Seu Jorge seguiu caminho andando ao lado do animal, que dera a prova de não ser mais o vigoroso garanhão. No caminho refletiu sobre a coincidência de encontrar o alemão perto de suas terras. Seu Jorge sempre fora muito discreto e taciturno, mas já desconfiava da verdadeira identidade do misterioso estrangeiro. Aquele era Josef Mengele. Um dos mais procurados fugitivos do Tribunal de Nuremberg. Nunca conseguiram localiza-lo. Daí alguns anos a polícia chamou a atenção de toda a cidade com suas sirenes ligadas. A vizinhança, sentada nas varandas, esticava o pescoço na tentativa de sanar a curiosidade. Estavam à procura do alemão. Era tarde demais, o nazista já estava longe.

Mengele residiu durante algum tempo perto do sítio do meu avô. Nunca fora descoberto. Nunca pagou pelos crimes cometidos.

Aproveitava um banho de mar quando morreu nas areias da praia de Bertioga, litoral sul de São Paulo. Apesar das controvérsias, em 1979 seu corpo foi exumado de um túmulo no cemitério do Rosário, em Embu, e o teste de DNA comprovou sua identidade. Mas os mistérios sobre sua vida no Brasil, no entanto, ainda continuam para historiadores, jornalistas e familiares dos que sofreram nos campos de concentração. E as memórias de uma guerra brutal ecoam nos meus pensamentos...

Ricardo Toledo

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