quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Metas, morte e micróbios

Receita infalível da vovó: três litros de dedicação em conserva, meia xícara de talento e uma colher de sopa de arrogância

A despeito das regras da literatura, roubo, sim, a característica dos textos jornalísticos e uso linha de apoio em uma crônica. Prepare-se para descobrir a fórmula da frustração, receita infalível e nada saborosa que a vida ensina aos desavisados.

Suspirei muitas vezes perdido em pensamentos oblíquos e, agora, meu cérebro e coração carecem de recauchutagem. Cheguei ao mecânico visto como pragmático, burocrata e imediatamente trouxeram o diagnóstico: perda total.

Morri sem saber interpretar as espetaculares mensagens criativas e abstratas. Depois de ler, ler, ler, ler para chegar a algum lugar, não cheguei a lugar algum. Tarde, percebi que amarrei o bode numa estaca podre. Cadê o bode?

É... Aqui do além é tudo mais fácil. Consigo falar sobre os sonhos que sonhamos em vida e isso lhes serve, humanóides. Vejam, acreditei que fosse possível mudar a história do mundo. Cheguei a atingir algumas metas nessa empreitada, mas entreguei o ouro à bandida ambição.

Quanta ineficiência sentimental. Que ingenuidade abissal, o deslumbre dos grandes tomou-me as ideias. Morri ao lado das pessoas erradas, na hora errada, no lugar errado. Então a morte. Cheiro e aspecto ruim tem a morte.

Os micróbios sugaram minhas tripas e órgãos. Fui enterrado vivo, mas para eles isso não fazia diferença, só queriam encher suas panças e me tornar carcaça.

Cheguei a bater desesperadamente na tampa do caixão, enquanto, lá fora, uns poucos amigos comentavam a minha morte e não me ouviam sucumbir.

_ Esse meu gajo perdeu-se nas ideias e caiu na cópia.
_ Ele se chamava David, queria matar Golias, mano.
_ Não sei onde ele errou, mas sei que errou. Só não sei explicar.
_ Ele merecia fim pior. Obcecado. Esqueceu de quem mais o cuidou.
_ Parecia ser bom na verdade.

Um padreco com discurso mais jurista que ecumênico fez às vezes da igreja católica apostólica romana.

“Deus, tende piedade do réu, digo, de vosso filho. A pena, esse infeliz, já cumpriu em vida, agora, tomai-o em teu amado seio. 

_Calango! Uma mulherzinha interrompeu aos gritos o discurso religioso. A moça, coitada, estava com os hematomas nos braços, de pancadas que eu, o quase defunto, havia lhe dado dias antes.

Trancafiado em meu desespero e vendo a morte como único remédio, não gastei mais as forças batendo no caixão. Suspirei uma decisão e tive um desatino: essas pragas que aceleram a decomposição de um morto vivo estão sepultadas comigo. Elas não terão outro cérebro, outro coração como banquete.

Nícolas David

Um comentário:

Rafaela Silva disse...

Parabéns pela licença poética, digo, licença jornalística... Esse seu texto faz-me relembrar meus tantos textos e poesias feitas nas madrugadas da minha adolescência indomada.