domingo, 29 de julho de 2012

Chuva

O sujeito perdeu sua carteira de identidade, a fonte do notebook dele estragou, a loura continua adiantando o beijo, o celular não possui carregador, as dívidas engolem seu orçamento, a rotina exige mais de 24 horas diárias, o cabelo está maior que a cara, a barba incomoda a boca, as gaivotas foram espantadas, a chuva estraga a cidade, a meia está encharcada, a caneta falhando, o conteúdo da aula não se lembra, a pauta da reunião de quarta não está pronta, perdeu o prazo da entrega das respostas que lhe valeriam um ponto a mais, a mãe não tem feito o café matinal, a câmera para o trabalho com fotos ele não tem.

O sujeito insiste em acordar todos os dias e ir resolvendo um por um dos problemas. Não há uma agenda que classifique pela importância o que o infeliz precisa resolver. Sentando em seu escritório ele espera o pai das causas impossíveis com a faca que corte todos os pepinos. Tempo, tempo, tempo. Tempo ruim. Chuva, desabamento, desalojamentos, interdições, defesa civil, bombeiros, bolsas de valores, redação, GPS, criança dentuça, mãe que grita, ruídos da cidade, escritório se movendo novamente.

Somente a chuva traz essa pausa para pensar em si. O sol o levaria aos amigos, depois ao bar, à cerveja, aos risos, agora ao cigarro – sem que a mãe saiba – à ressaca, às dores de cabeça, aos pensamentos desordenados da mãe consciência. O sujeito teimoso se moveria palas calçadas do bar até ao ponto de ônibus. Os estranhos não estranhariam seu caminhar trôpego, pois lhes chamou a atenção o caminhar normal de antes de ontem.

Outro amigo vai junto, mais risos, mais choro e pavio de vela, seringa, amuleta, deboche, dor, riso, pedra, papel, tesoura, ganhei, perdi, ganhei de novo e não tem nega. Cai chuva, sai sol casamento de viúva, nada rima com sol. Talvez lençol escrevi e agora que será de mim? De ti? Deles? De nós? Não sei. Ninguém sabe. O Google pode tentar resolver, mas chuva, chuva, chuva tu és o monstro santo que reaviva as plantas, mata a sede, desabriga os pobres, derruba pontes e me deixa assim: molhado.

Nícolas David

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