segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Des-manual da Revolução

Ana Maria Ghizzo

Como não mudar o país na visão de uma velha bandeira


* Nota ao leitor *

“Se essa rua fosse minha eu mandava ladrilhar só de verde e amarelo pro Brasil inteiro passar”. Há algumas semanas, se eu ouvisse esse trecho do comercial da Fiat, automaticamente os pelos do meu braço se arrepiariam. Agora me sinto como quem evita falar de um coração ferido, esquivando com todas as forças de tocar no assunto. Quando surgiu a pauta fui tomada por uma imensa euforia. Queria escrever algo inspirador, que pudesse transmitir toda a fúria que se escondia por trás de meros vinte centavos. Pretendia usar meu discurso mais elaborado para levar o leitor às ruas, calçando em cada palavra escrita um passo rumo à mudança. Não consegui... Depois de semanas de agonia cheguei à conclusão de que, infelizmente, tenho esse defeito: não consigo escrever sem convicção. Preciso acreditar no que digo, conhecer, ver. E a realidade que vi marchando nas ruas me fez parir esse dolorido desabafo. Levei muito tempo pra organizar todos esses sentimentos dentro de mim. Mais tempo ainda para conseguir colocá-los no papel. Aviso ao leitor que esse é um texto descornado.

A história por trás dos panos


Sempre foi um instrumento versátil. Pluralidade, aliás, ainda é, e sempre será o seu lema. Em terra onde tantos são trapos, orgulha-se de ser bandeira, e assim ser capaz de absorver e sustentar aquilo em que acreditam os que a empunham. Sempre foi assim: catalisadora de ideologias, e propagadora das mudanças. 

Ergueu-se pela primeira vez em 1710 nas mãos de uma multidão de jovens de conventos e colégios religiosos, para expulsar os mais de mil soldados franceses que tentaram invadir o Rio de Janeiro. Mais tarde, em 1827, com a fundação da primeira faculdade brasileira (a Faculdade de Direito do Largo São Francisco) sentiu seu corpo balançar aos primeiros ventos do movimento estudantil, na época, integrou sua força às campanhas de Abolição da Escravatura e Proclamação da República. Setenta anos depois, em 1897, denunciou as atrocidades de Canudos ao lado dos estudantes da Faculdade de Direito da Bahia. 

Absorveu em suas fibras o suor do movimento estudantil, e marchou ao lado dos estudantes desde então. Em 1901, quando se organizaram, fundando a Federação de Estudantes Brasileiros, ela estava lá. Em 1932, em São Paulo, quando participaram da Revolução Constitucionalista, ela estava lá. Em 1937, na criação da UNE (União Nacional dos Estudantes), ela estava lá.

Esteve presente no primeiro Congresso Interamericano de Estudantes, em 1952. E, nesse mesmo ano, quando Getúlio Vargas tropeçou em reservas de petróleo na Bahia, também gritou aos quatro ventos que o petróleo era nosso.

Nos anos 1950, ela balançou ao som de Elvis e um tal de rock`n roll. Em 1965, envolveu a Tropicália, e, dessa vez ao som de Caetano, Chico, e Vandré, remexeu-se contra o racismo, o preconceito, a discriminação, a repressão cultural e sexual. Saldou, com um viva, à sociedade alternativa de Raul. E, tingida de cores psicodélicas, também foi pano de fundo para os símbolos de paz e amor do movimento hippie e sua contra cultura.

Em 1964, João Goulart bem pensou que o golpe era coisa de primeiro de abril. Infelizmente enganou-se, e foi instituída a ditadura. Tempos difíceis, esses, para nossa velha amiga bandeira, quando a decisão de empunhá-la poderia custar uma vida. Mas, pra não dizer que não falei das flores, os estudantes resistiram contra o regime, expressando-se por jornais clandestinos, músicas e manifestações. E em 1967, apesar da intensa repressão a base de cassetetes, bombas de gás lacrimogênio, tanques e bombas de efeito moral, a UNE ainda queria virar o mundo pelo avesso, e mais uma vez, vermelha, inflamada e majestosa ela estava lá. 

No ano seguinte, 1968, com o AI-5 que concebia aos fardas verdes  plenos poderes, ela se enrolou pela primeira vez, não para recuar, mas para lamentar o assassinato do estudante Edson Lima Souto, de 17 anos, pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. Passado o luto, saiu às ruas do Rio, acompanhada de 100 mil pessoas, em marcha contra a ditadura militar.

Em 1984 exigiu: Diretas já! E quando as caras foram pintadas para novamente sair às ruas em 1992, ela também marchou, e depois festejou o Impeachment de Collor. Muito tempo se passou desde então, e nesse tempo muita coisa aconteceu. Hoje, nossa velha amiga bandeira está desbotada.

Nosso encontro e o des-enrolar da velha bandeira

Tarde-noite de alguma quinta-feira de dois mil e tantos. Aos poucos uma pequena multidão vai se aglomerando. Tendo o Mercado Público, o Terminal de Ônibus do centro e o Largo da Alfândega como pontos de encontro, alguns grupos vão se formando, enquanto isso, escuto alguns daqueles que ainda tentam se reunir ao telefone, “Tô aqui naquela piscininha, cadê você?”, “Aquela estátua esquisita de pinos de boliche ou sei lá o quê” – dizem sobre o Largo da Alfândega – Espantam-me com tanta criatividade e ignorância.

Tento me distrair, desapegar dessa mania de escutar conversas alheias. Não consigo, é um vício de muitos anos. “Minha mãe tá maluca, não queria me deixar vir. Eu disse pra ela ficar calma que já deixei os advogados lá da empresa de sobreaviso pra me tirar da cadeia se for preciso.” – Ouço uma jovem de seus vinte e poucos anos desabafar para o grupo de amigos. 

Mais uma vez mergulho em mim, e me afogo em pensamentos. Será que aquela mãe também pensou dessa maneira na oportunidade em que ela precisou sair às ruas e lutar por algo? O que a filha pretendia fazer que pudesse levá-la a ser presa? Era esse o assunto principal a discutir com os colegas? O principal era a possibilidade de confrontar algo, ou saber o que confrontar? O que estávamos confrontando, afinal? Devaneios, mais um vício a ser combatido.

Caminho um pouco e reparo num grupo um pouco mais jovem, com seus dezesseis-dezessete anos, que procura bitucas de cigarro na grama. Em busca de um peguinha, os garotos ignoram o sabor dos cocôs de pombo e o mijo dos mendigos. Isso é ser jovem? Nunca fui jovem. 

Ainda me sentindo velha esbarro num tipo alto. Dreads no cabelo, calça abaixo da cintura, jeito arrastado de andar, e marrento ao falar. Ouço fogos de artifício ao longe, e o tal tipo, acha graça em sugerir que em vez dos fogos, estourem coquetéis molotov. Se isso também é ser jovem agora me sinto pré-histórica.

Mais de cinquenta mil saíram de casa e percorreram as ruas de Florianópolis na noite de quinta, saíram de casa querendo fazer história, mas enquanto a história não se fizer todos os dias será só mais um ato, prestes a cair no esquecimento das notícias do dia seguinte. A manchete de amanhã sempre apagará os acontecimentos de hoje. 

Mais de cinquenta mil saíram às ruas, e eu fui um deles. Mas me perdi no meio de uma multidão embriagada de propósitos errados. Escorreguei nas garrafas de cerveja e desviei do passo trôpego daqueles que carregavam, em garrafas pet, os seus elixires da coragem. Engasguei com a maresia que, para mim,  tem cheiro de hipocrisia. De quem, inconsequente, canta: “É uma vergonha. Essa tarifa tá mais cara que a maconha”. Fácil sair às ruas pedindo o fim da corrupção, mas não ter o mesmo pulso firme na hora de não ascender o seu cigarrinho da paz e financiar o tráfico. Mas, fumar maconha é cool, dizem até ser esse “o cheiro da revolução”. Verde e amarelo também estão na moda. A chuva lava as caras pintadas e o grito fraco morre aos poucos. 

Afogava-me mais uma vez em devaneios quando meus pés enrolaram em algo e quase fui ao chão. Parei para ver no que tinha tropeçado, e me deparei com ela. Segurei-a, dei uma sacudida para tirar a sujeira, e perguntei como ela havia ido parar ali. Ela me contou que veio acompanhar um professor de matemática, que marchava por estar cansado de ganhar oitocentos reais para trabalhar na rede pública. Em alguma parte do caminho, o professor desacreditou, e foi entregar seu currículo no Bob’s, para fritar hambúrguer de madrugada e ganhar R$ 1.500 por mês, e ela havia ficado largada no chão, molhada e pisoteada.

No meio da multidão, paramos para conversar, e ela me contou uma história por trás dos seus, agora já desgastados, panos.

“Quando você acredita muito em algo se torna escravo, sem humor. Você tem que ser infiel às ideias em que acredita” (Jorge Mautner)


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