terça-feira, 30 de julho de 2013

Um homem no seu lugar

Ailton aprendeu a profissão de pescador com o pai e construiu a vida no mar 

Manoela Nascimento 

“De vez em quando eu pego o barco e vou até a ponta do morro,
onde a baía se abre para o mar, e vejo o sol nascendo”
 
Nascer no dia de finados não era uma boa ideia, segundo o escrivão do cartório. Então assim, por pura crendice, o menino Ailton Caetano dos Santos foi registrado não no dia de defunto, que era aquele dois de novembro, mas no dia de todos os santos, primeiro de novembro de 1961. Desde então, uma vida inteira se passou com os pés dentro d’água da enseada que parece ter moldado a personalidade desse filho do mar que sobrevive da pesca.

Da infância Ailton traz as lembranças do que aprontava com os amigos ao caçar passarinho e subir nos pés de árvores frutíferas. “Lembra, Duduga, nós com a funda atirando nos bem-te-vi?”, cutuca o amigo Luís Otávio, chamando-o pelo apelido de infância. Quando seu pai e mãe saiam para pescar, o menino ficava na casa da vizinha, que cuidava dele e dos seis irmãos. Foi o único que seguiu os passos na lida com o mar. “Eu tenho um irmão que não é bem certo das ideia. Mas assim, pouca coisa! Hoje, ele já ta bem melhor, nem dá pra perceber. Só eu virei pescador; os outros não sabem nada [de pescaria].”

O pai até que sabia pescar, mas quem realmente ensinou a profissão de Ailton quando ainda era um jovem foi Olegário da Silva. Deficiente visual, exigia certa paciência nas atividades de pesca, o que certamente não representou para o aprendiz uma grande dificuldade. Hoje, tem um barco, dois hectares de fazenda de marisco, que chama de “marisqueira”, e seu rancho de frente ao mar. Seu? “Não, nosso!”, ele me corrige. Dele e do filho, que não quis ser pescador, mas que herdará a pequena propriedade. Ailton sai para o mar quando tem que comer e na volta vende o peixe para os atravessadores ou para os moradores, na praça da Enseada.

O jeito contido com que o pescador fala de si mesmo se transforma quando o assunto é o seu ofício: aí ele fica expansivo, gesticula, domina a conversa. Formado no mar, com o fazer diário, Ailton repete muitas vezes a expressão “eu quero crer” quando aborda a questão da reprodução dos mariscos ou o sumiço dos peixes perto da costa, por exemplo. Não é cientista, mas sabe de meteorologia e correntes marítimas. Seu conhecimento vem do que foi transmitido durante gerações.

Enseada de Brito, bairro de Palhoça, é uma das localidades de Santa Catarina com maior influência cultural da herança açoriana. O meio faz o homem: com a fé originalmente católica, Ailton preza o rito da missa e participa dos festejos da igreja. Quando questionado se a cultura de festas religiosas e devoção aos santos está se perdendo, o fiel de Nossa Senhora de Lourdes entristece a face e diz: “Não vai se deixar perder; é muito bonito pra acabar”.

Poucos têm a sorte de Ailton: aliar sua forma de sustento ao lazer. “Nem sempre conto isso, mas quando tenho oportunidade, de vez em quando eu pego o barco e vou até a ponta do morro, onde a baía se abre para o mar, e vejo o sol nascendo de lá. Imagina aquele vermelhão refletido na água, o sol saindo por detrás do morro. É a coisa mais linda desse mundo!”. Entendi então que a maior riqueza do homem é também a do lugar.

Imagem: Mariana Smânia 

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