segunda-feira, 29 de abril de 2013

O veneno de cada um

Ricardo Toledo

A Morte de Sócrates, Jacques-Louis David
Entro na sala de recepção de uma clínica e algumas pessoas estão esperando atendimento para um exame radiográfico dos dentes. Sentados, todos leem. Uma senhora tem o filho pequeno ao lado; impaciente o garoto faz de uma cadeira sua nave espacial. Ela lambe os dedos e folheia uma revista de fofocas, Quem. No lado oposto, um casal: a mulher se concentra na leitura e o marido pançudo assiste ao Vídeo Show. Vou até a mesa da recepcionista e sou atendido por uma nada humorada secretária. Ela lia Caras. Sem vontade, pergunta meu nome, verifica no computador e me manda aguardar. 

Sento em frente ao casal de senhores. O garoto ao meu lado mordia a cadeira e me sorri com o brilho que somente as crianças têm no olhar. Sua mãe continua folheando a revista Quem. As roupas dos famosos, os novos relacionamentos, as mansões, as praias e os sorrisos perfeitos certamente enchem os sonhos daquela mulher semi-obesa, decepcionada com um provável casamento infeliz e um marido farto de se deitar com ela à noite.

Ergo as sobrancelhas e faço uma cara engraçada no estilo Mr. Bean. Qualquer adulto acharia patético, mas o garoto solta uma gargalhada. Ele se levanta, pula no colo da mãe e dá um tapa na revista lida por ela, o suficiente para chamar sua atenção. Impaciente, a mulher abre a bolsa e coloca nas mãos do filho um IPhone, agora, junto com o IPad, utilizado como uma eficiente “babá eletrônica” por muitas famílias.

O garoto parece se esquecer do mundo e mergulha no universo mágico da tecnológica. A situação me faz lembrar uma frase do jornalista britânico Gilbert Chesterton: “A educação é simplesmente a alma de uma sociedade a passar de uma geração para a outra.” Fico chateado em pensar que a alma do sorridente garoto será alimentada por revistas Quem e vícios tecnológicos.

Volto minha atenção para o casal de senhores. O marido não parecia muito feliz. Seus lábios arqueados no formato de um grande arco-íris cinzento dão a ele uma aura pouco amigável. Dou uma olhada e percebo que sua esposa lê atenta uma edição da Ti ti ti. Não conheço, mas acredito ser limitado o conteúdo proposto por... Ti ti ti.

Desconfiado, vou à pilha de revistas sobre a mesinha tentar desmascarar a conspiração daquele consultório contra qualquer um interessado em ler algo minimamente útil. Caras, Quem, Ti ti ti. Ti ti ti, Caras, Quem e Contigo. Não acredito! Será possível? Lá pelas tantas, cansado de desmontar aquela barreira de revistas indecentes, começam a surgir Vejas, IstoÉ, Galileus e SuperInteressantes; desfolhadas e com capa soltas, esquecidas, maltratadas. Mesmo criticadas, são um tesouro no meio de tanta informação banal.

De volta à cadeira, sento satisfeito e com um sorriso na cara. Escolhi uma edição de Veja e aleatoriamente abro na seção Gente – aquelas duas páginas dedicadas à fofoca. Desconfortável, viro logo a página. Encontro uma interessante reportagem especial sobre o futuro da escrita impressa em papel. A reportagem é um primor. Fala desde os primeiros achados escritos na Mesopotâmia, até a desleal competição com os IPads no mundo atual.

Numa passagem, um destaque a Sócrates e sua insistente resistência à leitura, cujo hábito começava a ser difundido. O filósofo acreditava que apenas a discussão, a dialética, o debate, a oratória eram os verdadeiros e únicos caminhos para o conhecimento e o desenvolvimento da memória; subestimava uma das maiores revoluções humanas, impulsionada pela invenção da prensa por Gutenberg. A genialidade de Sócrates terminou em uma taça servida com Cicuta, veneno mortal feito do extrato de uma planta.

- Ricardo!- Meu nome é chamado, interrompendo a leitura.

Deixo a revista de lado para fazer o procedimento necessário: tiro chapas, fotos e moldes. Neste meio tempo, penso na situação do país: uma dentista queimada viva por um menor de idade em seu consultório porque só tinha 30 reais na carteira; a Comissão de Constituição e Justiça tenta, por meio de um golpe, limitar o poder do Supremo Tribunal Federal e submeter suas decisões ao Congresso; um jovem estudante é assassinado por um tiro na cara na mais fria crueldade.

Na saída, ao passar pela recepção, pergunto-me se alguém ali estaria preocupado com o atual momento do Brasil. A criança, sua mãe e o casal de senhores já não estavam mais por lá. Quatro outras pessoas aguardavam atendimento. Em suas mãos Caras, Quem, Ti ti ti e Contigo.

Vou embora com a impressão de que uma taça de Cicuta não faz mal a ninguém.

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