Ana Maria Ghizzo
Nota ao leitorCaro leitor, escrevo este relato com a culpa de quem nunca consegue reproduzir na íntegra aquilo que vê, moldando a frustração num esforço incansável de lhe transportar o máximo de pequenezas que pude captar.
Do lado de fora do apartamento, na Avenida Beiramar Norte, o
céu vestia-se de azul, enfeitado de graciosas nuvens brancas. Um dia
ensolarado, de temperatura agradável, daqueles que, se preparamos os ouvidos,
conseguimos até sintonizar um tímido cantar de pássaros além das buzinas dos
carros. Era tarde de sexta-feira, mas, do lado de dentro da janela, as roupas
eram de domingo.
Abotoaduras, lenços e camisas de botão compunham o figurino
dos ali presentes, e contracenavam graciosos ao lado de aparelhos auditivos,
almofadas ortopédicas, e, é claro, os indispensáveis pares de óculos. Tudo
impecável, caprichado, preparado com o carinho de quem planeja minuciosamente
algo importante.
Amigas, primas, tia – a única ainda viva; reuniam-se ali
cinco vidas em 417 anos somados com orgulho. Uma reunião de rugas, histórias e
carinho. Ajeita almofada nas costas, rola a cadeira de rodas mais pra perto que
a conversa vai ser longa.
–Novidade? Fui ao show do Roberto Carlos! Foi muito bom, e
no final ele entregou as rosas, mas não quis ir pegar. Muita muvuca. Compro uma
rosa e faço de conta que é a dele. Pronto, se bobear alguém até compra a minha
rosa.
–Oi? Não ta me ouvindo bem?
–Ah, isso me fez lembrar que veio aqui em casa essa semana
um cara da assistência do meu aparelho (aponta pro ouvido), ensinou a lavar com
álcool, mas nada tirava o amarelado, sabe? Então joguei na kiboa mesmo, ficou
que foi uma beleza.
Pneumonia, Alzheimer, osteoporose, uma receitinha aqui – tiro
e queda! – outra ali, mas chega de falar de doença.
–Ui, credo, que mania de velho! (risadas)
–Deixa de falar disso e olha a foto do meu bisneto! Vive lá
em Fortaleza, não é a coisa mais fofinha? É, eu sei que Fortaleza é longe, mas
vou com eles agora em julho passar as férias, ai aproveito pra matar um pouco
da saudade.
Foto guardada de volta na carteira, envolta em plástico,
proteção e afeto. Inicia-se então a competitiva, porém saudável, listagem dos
netos, bisnetos, tataranetos... Um turbilhão de memórias, contadas não com a
tristeza nostálgica da saudade, mas com a alegria plena do que foi bem vivido.
Seguida pela inevitável conversa:
–Lembra da Fulaninha? Era feia que era uma porta, a
coitada... Morreu! A irmã também.
–E a Ciclaninha? Aquela sofreu na mão do Beltrano,
coitada... Se ele acordasse com sede a noite cutucava ela pra ir buscar um copo
de água. E ela ia, tansa.
–A Beltrana não vem?
–Vem sim, mas tá atrasada, pra variar. Nem quero mais que
venha, se ela chegar aqui vou mandar pra puta que pariu.
–Ai, menina, olha a boca! (risadas)
Tudo na mesa, hora do chá. Sirvam as rugas.
Foto: Ana Maria Ghizzo
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