segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

A Crônica amorfa

Estou delirando. Sou, agora, uma irracional a raciocinar. Nessa paradoxal possibilidade é que me permito cometer desvarios imperdoáveis. Nessa louca explicação, sinto-me imaculada até pelo julgamento dos estranhos, daqueles que não conhecem minha história. Esses figurões estão impedidos de tolerar o meu passado, mas, aqui e agora, têm a oportunidade de, para sempre, entender os motivos da minha desistência.

Ando com dores insuportáveis na minha imaginada consciência. Bem sei a origem dessas marteladas mentais. São o resultado da minha inaptidão para cicatrizar sentimentos que permanecem incólumes à passagem dos anos. Como minha existência não é nenhuma novidade, o acúmulo das tristezas fragilizaram meu ser. Tudo dói. Mas não é uma incomodação física. É uma pertubação psicológica. E sei: interminável.

A passagem do tempo, que tantas vezes fechou feridas, atua, para mim, às avessas do ditado. Nesse trecho da minha longa história, o vilão é o tempo, cuja numeração soma mais de três dígitos quando são contados os meus anos. Centenários, completei muitos. Uns deveras agitados, outros calminhos, sonolentos, dignos de hibernação para toda a minha grandeza. Eu não ouço, nem vejo, sinto.

Sou rocha. Uma eventual testemunha dos acontecimentos que próximos de mim se tornam fatos. Não tenho ouvidos para os sons, nem olhos para as paisagens. Por mim, nada perpassa em uma boca. Não aprecio aromas com um nariz. Dos sentidos humanos, um me é possível, o tato. Pareço chorar quando as gotas da chuva por mim rolam. No calor do sol, esquento e ninguém pisa sobre mim.

Sou pedra. Sou formadora de uma bela composição da natureza. À minha frente está o mar, que me refresca salgado quando a maré exibe-se alta. À minha direita a areia fina, suja, fétida. À esquerda tantas outras pedras, úmidas como eu, repletas do verde das algas. Atrás, árvores de uma vegetação inexplorada. Cá estou, nessa praia, onde homens e mulheres desfilam semi-nus, crianças brincam alegres e velhos desavergonhados mostram suas pelancas durante os dias de sol. À noite, andarilhos, cães.

Diamantes, esmeraldas, rubis, safiras são meus parentes luxuosos. Outros dos meus semelhantes, às vezes, podem se gabar ao compor o cimento que dará sustentação às casas. É também nas residências que, ocasionalmente, estão o mármore, meus primos de segundo grau. Felizardos, eles não sabem o que é a eterna estagnação. Ao menos uma vez moveram-se. Eu... Eu sou membro da composição de uma praia.

Estou próxima da imensidão do mar. Quando esse grandalhão, dono de tantas águas está agitado, costuma levar para suas profundezas os corajosos banhistas. Desesperados, eles batem suas mãos ao léu. Afogados, gritam estridentes instantes antes da chegada de suas mortes. Sei por meio da minha sensibilidade. É esse o adjetivo que mais desenvolvo, sempre, sem ter que dormir, comer, pagar contas. Permito-me, apenas sentir.

A morte não me preocupa. Ela constantemente se aproxima de mim, levando pescadores que se aventuram a caminhar por aqui quando estamos lisas como sabão. Eles deslizam, batem suas cabeças em nós. Então, estatelam-se sangrentos no chão. São segurados pela areia da praia desfalecidos, inertes, solitários. Quando acompanhados de gente com o mesmo ofício, são levados para o patético cerimonial da morte, o velório, o enterro. Todos aqueles rituais sem graça que jamais assisti.

Meus relatos, forço-me a frisar eu não vejo, nem ouço, são filhos do meu sentimento. As sensações que experimentei desde minha formação até o segundo que se foi, dão forças a certeza das minhas verdades. Esse tempo que me caleja dia-a-dia torna meu discurso crível. Tudo que falo, menciono, cito é real. Sou pedra, para sempre uma pedra a testemunhar a entediante passagem dos anos. Um débil ser desgastado, cansado dessa terrível imobilidade.

Sinto que virá dos céus, brevemente, uma forte tempestade. Não sou meteorologista. Estou mais próximo, convenhamos, da geologia e da petrologia. Senti, ainda assim, a aproximação dos trovões, a claridade dos relâmpagos. Mas, receio que nem a força dos raios me rachará. Continuarei na forma dessa áspera pedra, tantas vezes ironizada como a perfeita representação do coração dos humanos frios.

Eternamente pedra e carregadora de um fardo maior que minha grandeza. Não tenho pernas para sair dessa praia, cuja beleza tornou-se, para mim, banal. Não tenho mãos para empurrar as vizinhas que se encostaram sem pedir licença. E o que é pior, não tenho cérebro para imaginar uma maneira de migrar para outros cantos. Que bem me faria saber fugir.

Para sempre uma pedra inválida, falida, desprezada, depauperada, ridícula, tosca, rabugenta, acinzentada, descuidada, amorfa, inoperante, impenetrável, intragável, inacabada, inacabável.


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