domingo, 21 de outubro de 2012

Existe Inocência?

Há cerca de um ano li ”Os Versos Satânicos”. Um livro que sempre me despertou enorme curiosidade. Calma, caro leitor, não sou satanista, senão, estaria me correspondendo com Paulo Coelho para saber como sair dessa. Tampouco sou adepto à prática de bruxaria. Se houveram vidas passadas, é provável que fui pendurado na forca, minhas botas bateram sobre o cadafalso por tentar defender as mulheres que foram queimadas ou condenadas à caldeira de óleo fervente. Minhas severas dores no pescoço são mais uma pista de que isso pode realmente ter acontecido. O autor do livro, o indiano Salman Rushdie, não é feiticeiro, mas sabe bem o significado de caça às bruxas.

É costume meu carregar o livro que leio nas mãos. Tenho a mania de observar a reação das pessoas ao repararem o título do livro. No caso deste, a maioria arqueava as sobrancelhas, os olhos arregalavam, me olhavam com um misto de curiosidade e repugnância. Talvez a obra de Rushdie não esteja à altura de Malleus Maleficarum, que contribuiu com o destino trágico de milhares de mortes na inquisição medieval. Talvez seu livro não tenha mudado a forma de como o mundo enxerga e julga uma religião. Todavia, é cedo para aquilatar as conseqüências da obra.

Seu livro fez emergir enorme revolta no mundo Islâmico. Os extremistas saíram às ruas. Suas páginas serviram de combustível para fogueiras acesas entre barbas, véus, burcas, cartazes e pedaços de pau erguidos ao céu. Fora declarada contra ele uma Fatwa: sentença de morte Islâmica. O aiatolá Khomeini a anunciou e pouco tempo depois faleceu, junto com ele foram enterradas as esperanças de revogar a sentença – tornou-se eterna. Somente o próprio líder religioso pode revogar a decisão. O escritor, ao receber a notícia, estava ciente de que uma nova e sombria existência estava por começar. O fundamentalismo Islâmico não blefa no jogo de cartas. No xadrez, executa o xeque-mate. Não há nova chance para o escritor, seu livro ferira o símbolo mais importante da crença Islâmica, aquele que subiu ao céu montado em um cavalo, o Profeta Maomé.

Mesmo com o sol brilhando, a escuridão tomou conta dos dias de Salman. O tradutor japonês teve sua vida ceifada por um fanático que o apunhalou pelas costas em Tóquio. A edição italiana quase levou à morte seu tradutor devido a um atentado. O editor norueguês escapou por pouco – levou quatro tiros nas costas. Durante anos o escritor teve de viver escondido, vivendo uma vida em fuga, ciente de que era um homem morto. Tornou-se símbolo da liberdade de expressão, da necessidade de ponderar uma sensibilidade abstrata, imposta pela religião. Rushdie, segundo seus amigos, é um homem gentil e educado, e que ultimamente não sente mais medo. Vive em Nova Iorque com sua mulher, leva uma vida, digamos assim, comum. Mas sua obra mudou o conceito das relações entre arte e religião. Numa época, e claro, nunca vivi em outra, em que o mundo nunca fora tão confuso e imprevisível.

Com Londres tomada pelo pecado, Gibreel Farishta e Saladim Chamcha, personagens principais do livro, explodem dentro de um avião no ar, a partir daí reavaliam o valor de suas vidas e crenças. Suas aparências sofrem uma metamorfose, um em anjo, outro em demônio. Este, já com chifres e pés de bode, faz coco de cabrito na frente de policiais londrinos em um cômico capítulo. A maior polêmica e fonte das revoltas são as revelações do anjo Gabriel ao profeta. A verdadeira identidade do anjo fica subentendida, o título a revela. Esse é o roteiro

do livro de Salman. Não me aprofundo no assunto por medo de um fanático me assassinar no mercado público.

Eis então que surge mais uma obra controversa. Os últimos protestos espalhados pela produção do filme A Inocência dos Mulçumanos, trouxeram o tema e o nome de Rushdie de volta às manchetes. Subiu o valor para aniquilá-lo, o preço de sua cabeça subiu para 3,3 milhões de dólares. A justificativa é que, caso o escritor já estivesse morto, novos insultos ao Islamismo seriam evitados.

A qualidade do filme é vil e ofensiva; o cenário é grotesco. O conteúdo islamofóbico deixa clara a intenção de provocar. Por dias os nomes do diretor e produtores não foram divulgados. Apenas rumores eram espalhados na mídia. Raul Seixas diria: “Quem será o desgraçado dono dessa zorra toda?”. Cocei minha cabeça, meu queixo, procurei entender; será que agora o dito cujo está mostrando os dentes, sorrindo como uma hiena? Obteve o resultado que desejava? Os atores do filme estão com medo, suas vidas correm risco.

Os cristãos, penso eu, são mais acostumados, provam o veneno da provocação constantemente, porém o antídoto já circula em suas veias. O filme “Jesus Cristo Super Star”, por exemplo, não agradou, e, mesmo assim, os padres não sentenciaram os produtores à morte. No Brasil, uma passeata gay apresentou em cartazes santos católicos em vestes obscenas. A igreja pouco se manifestou.

Não deixo de considerar: apenas uma pequena fatia, a parcela fanática, extremista, muitos deles do movimento reformista salafista, liderou a maioria dos protestos. No entanto, não desconsidero o limite que se pode alcançar o ódio, a violência que arde em ira nessas manifestações. Ódio e ira também evidentes no conteúdo de A Inocência dos Mulçumanos. Como resultado, algumas mortes já ocorreram, e podemos esperar, em breve, as próximas “Fatwas”.
Ricardo Toledo

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