Claudia Reis
O jornalismo já mudou a
minha vida algumas vezes.
Uma delas foi em 2004,
quando estava me despedindo do curso e, no meio da monografia e de outro
trabalho final, participava da edição n° 11 do jornal-laboratório Fato &
Versão, coordenado pela professora Raquel Wandelli.
Minha pauta tinha objetivo
específico: sensibilizar a direção da Unisul Pedra Branca quanto à forma como
lidava com o problema dos cães abandonados no campus. A ideia era mostrar as
diversas maneiras com que o ser humano tratava os animais, trazendo também
alternativas humanizadas que já eram aplicadas por empresas, instituições e
mesmo no cotidiano, de forma individual, por pessoas iguais a mim e você.
Capa de Tutela Jurídica dos Animais,
de Edna Cardozo Dias
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Um dos trechos que mais me
marcou foi retirado do livro Tutela Jurídica dos Animais, de Edna Cardozo Dias.
A obra foi adaptada de sua tese de doutorado, defendida junto à UniversidadeFederal de Minas Gerais (UFMG), em 2001. O fragmento abaixo me chamou a atenção principalmente porque lembrei das
matérias de TV que tinham como tema o soro antiofídico, e as cenas que acompanhavam
os offs mostravam o veneno escorrendo das peçanhas das cobras. Não havia
registro, pelo menos em minha memória, da imagem de cavalos nessas matérias.
Na
obra, Edna conta
a história do cavalo 814 que servia ao Instituto Butantã como um dos animais soroprodutores – aqueles que produzem antídoto para venenos, como o de cobra. “O processo de fabricação de soros consiste em se injetar veneno de cobra, escorpião ou aranha nos cavalos, para a reprodução de anticorpos. O impacto do veneno é tão forte que ele precisa ser recebido em três dosagens. Os cavalos são amarrados em um tronco, sem chance de defesa, e recebem em dias alternados as doses do veneno. Cheios de dor, arrastam-se até o cercadão, onde descansam alguns dias e voltam ao tronco para serem sangrados. Alguns dias de descanso e recomeça ao martírio, que só termina quando morre o animal”.
Descoberto pelo Jornal do Brasil em 1990, o 814 apresentava as costas com sangramentos contínuos, não tinha um olho, sofria terríveis cólicas de fígado e continuava a receber veneno para ser sangrado. Estima-se que a vida média dos cavalos desses institutos seja de quatro a cinco anos, mas o 814 já era utilizado pelo Butantã há 14 anos. Ao saber do caso, entidades ecológicas tentaram levar o animal a uma fazenda onde poderia se aposentar, mas os experimentadores nem ao menos aceitaram dialogar ou admitiram os maus-tratos. Diante do impasse, solicitou-se a intervenção do Conselho Regional de Medicina Veterinária de Belo Horizonte, e só então se abriu uma sindicância para esclarecer o modo como os cavalos – especificamente o 814 - eram tratados.
Em 13 de março de 1990, o Instituto Butantã alegou “não haver outro método eficaz para produção de soros e que o estado de saúde do referido cavalo era bom, estava bem alimentado e que não era economicamente viável a sua aposentadoria”. Edna traz ainda a justificativa completa do Dr. Assis Isaias Raw, o Coordenador da Comissão de Produção de Soros Hiperimunes, questionando a importância do uso de cavalos na obtenção de soro: “O que fazer então? Deixar, simplesmente, que aproximadamente 25 mil brasileiros, principalmente trabalhadores rurais, morram anualmente quando vitimados por picadas de serpentes, por exemplo?”. Em 22 de março do mesmo ano, ou seja, nove dias depois do instituto afirmar a boa saúde do 814, o próprio Butantã divulga a sua morte e de mais dois animais, justificando-a com o diagnóstico de “um adiantado estado degenerativo”.
A matéria toda rendeu seis
páginas do Fato & Versão, e teve como título “A irracionalidade (de
quem?)”.
De Minas também está
saindo, quentinho, recorte da tese de doutorado de Thales Tréz, professor da Universidade
Federal de Alfenas (Unifal), intitulada Entendendo a experimentação animal – A crítica científica ao uso de animais como modelos de pesquisa para a saúde humana.
Thales Tréz participou, em 2009,
do VII World Congress on Alternatives and
Animal Use in Life Sciences, realizado em Roma
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Em 1997, estudante de
graduação da UFSC, Thales entrou com pedido de objeção de consciência, recusando-se
a participar da disciplina de fisiologia, por conter aulas práticas com
vivissecção. Em menores proporções, Thales antecipou a ação dos que invadiram o
Instituto Royal: ao se deparar com o cão saudável em cima da mesa, não pensou
duas vezes; agarrou o cachorro e saiu correndo da sala. Depois do episódio, a
prática – sempre a mesma, repetida semestre após semestre - foi substituída por
exibição de vídeo. O Departamento de Fisiologia da UFSC ainda o acusou de roubo
de dois patrimônios públicos: o cachorro e sua coleira.
Depois do Fato & Versão
impresso, e já profundamente impactada por tudo o que tinha reproduzido, peguei
uns treze quilos do jornal e saí ao centro de Florianópolis, a fim de
distribuí-lo nos cursinhos pré-vestibulares e de conversar com os professores
de Biologia, sugerindo o tema para debate em sala.
Capa do Fato & Versão n° 11, editado em 2004 |
Outro momento que ficou
fortemente registrado daquela época é que, lendo a matéria depois de impressa,
me assustei: “mas esses relatos são de 1990! Já deve haver métodos
alternativos!”. Nada. A sangria de cavalos continuava, quatorze anos depois, a
ser a única forma de salvar pessoas picadas por cobras. Hoje, googleando para
este texto, tenho a grata surpresa de encontrar matéria publicada no site da
Unicamp, em 2008, divulgando que a Universidade de São Paulo (USP) desenvolve
pesquisas para substituir o método secular: a partir da engenharia genética,
estão produzindo substância que se liga às proteínas do veneno, bloqueando,
assim, suas ações nocivas. Número de cavalos envolvidos para salvar pessoas:
zero.
Com toda a polêmica que
ainda ecoa sobre o caso Instituto Royal, um dos argumentos de quem defende os
testes em animais que parece rematar diversas discussões é: “então você prefere
ver seu filho morrer de câncer a permitir que testem em animais substâncias que
poderiam deter a doença?”. A minha resposta pode não encerrar o debate, e nem resolver
o impasse, mas me faz continuar refletindo: “Você aceitaria que tomassem seu
filho para servir de cobaia a medicamentos que pudessem salvar a humanidade de
doenças mortais?”.
Talvez o cerne da questão
seja apenas um: permitimos a crueldade porque ela acontece com quem não
convivemos. Com os que estão longe dos nossos olhos. Porque se é um “mal
necessário”, que esse mal seja feito com os outros, menos comigo e com a minha
família.
Por que aceitamos que façam
com os outros o que não queremos que façam conosco? Pelo fato de que não falam
a nossa língua? Não acreditam no mesmo deus e não têm a mesma cor de pele? Isso
nos daria o direito de escravizá-los a fim de nos beneficiar, quando esse
benefício é consequência do sofrimento alheio? Curioso pensar que se procura
livrar os homens de doenças como o câncer induzindo outros seres a terem câncer
para que possamos testar curas.
Xampu concentrado nos olhos
de coelhos é refresco.
Um comentário:
Excelente matéria!
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