quarta-feira, 13 de março de 2013

Início, meio e fim

Eu estava sentada em frente a máquina de escrever. Olhei ao redor e senti falta de algo que perdi há não muito tempo. Ajeitei-me, buscando uma posição de conforto na cadeira. Sem muito interesse, provei o cappuccino e observei as pessoas em suas sacadas fazendo sei lá o quê. Sem êxito, tentei entender qualquer coisa naqueles rostos por mim desconhecidos, mas que, ao mesmo tempo, eram extremamente íntimos, porque eu os olhava há horas e horas.

O relógio é vagaroso. Para ele, não importa a quantidade de coisas que uma neurótica anota na sua agenda. A meta é escrever o primeiro capítulo do livro, depois, fechar três matérias, fazer mais quatro ou cinco notas, a agenda do final de semana, preparar o seminário para apresentar à noite e ler pelo menos um livro de Walter Benjamin.

São 11h da manhã, já se passaram três desde que acordei. Às 14h, preciso estar na redação com a matéria pronta e impecável. Olhando para o espelho, não consigo enxergar além do corpo e ver a minha alma. A imagem da menina que brincava de bonecas e inventava mil e uma histórias passa na frente como o flash de um filme. Pego um cigarro e levo a boca. Não gosto de fumar, mas as tragadas acalmam e me fazem viajar sem uma direção definida.

O texto não sai, as palavras não surgem como mágica e a história se perde no meio do caminho. Cadê a menina das mil e uma histórias? Digito e apago, digito e apago, digito e apago... O nervosismo e a agonia por não conseguir formular uma frase com o mínimo de coesão me apavoram. Para Glauber Rocha, bastou uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Para mim, uma máquina de escrever e uma ideia na cabeça ainda não são o suficiente.

Olho de novo para o espelho que está na minha frente. Uma escolha inconsciente, talvez por precisar ficar frente-a-frente comigo mesma. A menina com as bonecas não vem mais à memória. Respiro fundo, pausadamente, toco os traços do rosto. Quem de fato seria se não mais aquela garotinha de anos atrás? Deixo o café de lado, vejo que no armário, uma garrafa de vinho tinto me chama.

Pego a taça, ponho o vinho. Sento de novo na frente da máquina, talvez, agora, com algumas gotas de álcool no sangue, consiga escrever algo. Nada! O que há? O que falta? Mais álcool, mais cigarro. Ligo o som, Rita Lee grita aos meus ouvidos com Raul Seixas. Bela dupla. “Você pensa em mim toda hora, me come, me cospe e me deixa; Talvez você não entenda, mas hoje eu vou lhe mostrar; Eu sou a luz das estrelas; Eu sou a cor do luar; Eu sou as coisas da vida; Eu sou o medo de amar; Eu sou o medo do fraco, a força da imaginação; O blefe do jogador; Eu sou, eu fui, eu vou”.

Olho pela última vez para o espelho. Na mão direita a taça de vinho, na esquerda o bloquinho de ideias inúteis que até agora não havia servido para nada. Encaro-me estática, concentrada. Tento de algum modo entrar em mim e extrair o substrato que preciso. Gita continua a tocar e as ideias dançam dentro da minha cabeça. Ainda de olhos fechados enxergo a redação, as matérias, o gravador, o bloco e as canetas. “Sou jornalista, não sou escritora”, eis a primeira frase batida na página em branco.

Deixo a máquina de lado, pego as matérias ainda por terminar em cima da mesa, largo o vinho e o cigarro. Chaves, bolsa e uma caneca de chá para aguentar o estresse da redação. São 14h, o atraso precisará ser compensado. Um seminário e Walter Benjamim ainda me esperam. O livro já está começado, menos um item para a agenda - a verdade, é que ele já estava pronto antes mesmo de a primeira letra ser batida.

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