O relógio é vagaroso. Para ele, não importa a quantidade de
coisas que uma neurótica anota na sua agenda. A meta é escrever o primeiro capítulo
do livro, depois, fechar três matérias, fazer mais quatro ou cinco notas, a
agenda do final de semana, preparar o seminário para apresentar à noite e ler
pelo menos um livro de Walter Benjamin.
São 11h da manhã, já se passaram três desde que acordei. Às
14h, preciso estar na redação com a matéria pronta e impecável. Olhando para o
espelho, não consigo enxergar além do corpo e ver a minha alma. A imagem da
menina que brincava de bonecas e inventava mil e uma histórias passa na frente
como o flash de um filme. Pego um cigarro e levo a boca. Não gosto de fumar,
mas as tragadas acalmam e me fazem viajar sem uma direção definida.
O texto não sai, as palavras não surgem como mágica e a história
se perde no meio do caminho. Cadê a menina das mil e uma histórias? Digito e
apago, digito e apago, digito e apago... O nervosismo e a agonia por não
conseguir formular uma frase com o mínimo de coesão me apavoram. Para Glauber
Rocha, bastou uma câmera na mão e uma ideia na cabeça. Para mim, uma máquina de
escrever e uma ideia na cabeça ainda não são o suficiente.
Olho de novo para o espelho que está na minha frente. Uma
escolha inconsciente, talvez por precisar ficar frente-a-frente comigo mesma. A
menina com as bonecas não vem mais à memória. Respiro fundo, pausadamente, toco
os traços do rosto. Quem de fato seria se não mais aquela garotinha de anos
atrás? Deixo o café de lado, vejo que no armário, uma garrafa de vinho tinto me
chama.
Pego a taça, ponho o vinho. Sento de novo na frente da
máquina, talvez, agora, com algumas gotas de álcool no sangue, consiga escrever
algo. Nada! O que há? O que falta? Mais álcool, mais cigarro. Ligo o som, Rita
Lee grita aos meus ouvidos com Raul Seixas. Bela dupla. “Você pensa em mim
toda hora, me come, me cospe e me deixa; Talvez você não entenda, mas hoje eu
vou lhe mostrar; Eu sou a luz das estrelas; Eu sou a cor do luar; Eu sou as
coisas da vida; Eu sou o medo de amar; Eu sou o medo do fraco, a força da
imaginação; O blefe do jogador; Eu sou, eu fui, eu vou”.
Olho pela última vez para o espelho. Na mão direita a taça
de vinho, na esquerda o bloquinho de ideias inúteis que até agora não havia
servido para nada. Encaro-me estática, concentrada. Tento de algum modo entrar
em mim e extrair o substrato que preciso. Gita continua a tocar e as ideias
dançam dentro da minha cabeça. Ainda de olhos fechados enxergo a redação, as
matérias, o gravador, o bloco e as canetas. “Sou jornalista, não sou escritora”,
eis a primeira frase batida na página em branco.
Deixo a máquina de lado, pego as matérias ainda por terminar
em cima da mesa, largo o vinho e o cigarro. Chaves, bolsa e uma caneca de chá
para aguentar o estresse da redação. São 14h, o atraso precisará ser
compensado. Um seminário e Walter Benjamim ainda me esperam. O livro já está
começado, menos um item para a agenda - a verdade, é que ele já estava pronto
antes mesmo de a primeira letra ser batida.
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