A estrada estava
movimentada. Era noite. Os faróis refletidos no para-brisa pareciam
altos e ofuscavam a visão, dificultando ainda mais a visibilidade.
As gotas da chuva eram grossas e faziam muito barulho ao atingir a
lataria do carro. Ecos repetidos de trovões. O pano de flanela não
servia mais para desembaçar o vidro dianteiro. Os ferozes caminhões
não davam folga, aceleravam, provocavam, grudavam na traseira do
automóvel numa imponente tentativa de demonstrar a superioridade de
suas enormes carrocerias e força descomunal.
No sentido contrário
da pista, os pneus das gigantes Bestas cuspiam respingos roubados do
asfalto encharcado, transformando o limpador de para brisas num
instrumento inútil. A intensa pressão dos ventos feita pelos ônibus
e caminhões desestabilizava o carro. As placas de alerta na rodovia
inexistiam e não percebi sequer uma viatura de fiscalização
durante as últimas 3 horas de viagem.
A escuridão dominava
um cenário de trevas. Os automóveis disputavam espaço numa
frenética corrida contra o tempo. Manobras perigosas e arriscadas
como as tentativas frustradas de ultrapassagem eram praticadas com a
certeza da impunidade que alimentava o ânimo desses viajantes.
Ocorreram algumas colisões. Enxerguei caminhões virados e suas
cargas arremessadas. Havia sangue. Morte. Todo tipo de sofrimento
farejado no ar. Trechos exaustivamente conhecidos pelos anjos do
asfalto.
Concentrei minha
atenção na apagada faixa amarela que dividia as pistas. Um erro
qualquer poderia ser fatal. O rádio desligado, todas as funções do
cérebro concentradas e determinadas a não vacilar no meu automóvel
popular, uma verdadeira armadilha sobre rodas fabricada sob os
auspícios e descaso das autoridades.
A distância que
mantinha do veículo da frente era suficiente para realizar qualquer
manobra ou freada de emergência, porém, um caminhão Scania na
minha traseira me pressionava. Dava sinais de luz, freava
bruscamente, se aproximava demais.
Acelerei um pouco para
me distanciar e acalmar o estressado condutor do vagalhão. Pelo
retrovisor, percebi sua impaciência. Acelerou e logo estava a poucos
centímetros de mim. Estávamos próximos de uma curva fechada. O
mato muito alto impedia avistar os veículos que vinham no outro
sentido, deixando toda a responsabilidade para a minha desgastada
intuição.
Sem perceber, rápido
como um dos raios no céu daquela trágica noite, um farol
descontrolado em minha direção se dirigiu. Não havia resposta nem
reflexo suficiente para escapar daquela inevitável colisão. O
piscar de olhos retratou a imagem e não me deixou esquecer: os
faróis de um enorme caminhão Mercedes-Benz me atingiram de frente,
como um beijo da morte não desejada.
O Scania colado em meu
para choque contribuiu e minha vida foi enlatada como uma sardinha.
Estilhaços de vidros espalhados por todos os lados, escombros, ferro
distorcido, óleo, gasolina, princípio de fogo. Senti na pele todo
horror visto diariamente por milhares de brasileiros. Meu último
pensamento, o último suspiro da minha consciência foi pensar
na minha família, minha namorada, o filho que ainda não fiz, o
sucesso da carreira que não tive tempo de alcançar, os lugares que
não visitei e aqueles que nunca mais tornarão a ouvir o som dos
meus passos.
Fatalidade? Não.
Descaso com a vida humana: realidade nacional.
Um enorme clarão tomou
conta da minha alma e não havia mais sofrimento.
Morri.
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