quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Um sonho despejado no asfalto

A estrada estava movimentada. Era noite. Os faróis refletidos no para-brisa pareciam altos e ofuscavam a visão, dificultando ainda mais a visibilidade. As gotas da chuva eram grossas e faziam muito barulho ao atingir a lataria do carro. Ecos repetidos de trovões. O pano de flanela não servia mais para desembaçar o vidro dianteiro. Os ferozes caminhões não davam folga, aceleravam, provocavam, grudavam na traseira do automóvel numa imponente tentativa de demonstrar a superioridade de suas enormes carrocerias e força descomunal.

No sentido contrário da pista, os pneus das gigantes Bestas cuspiam respingos roubados do asfalto encharcado, transformando o limpador de para brisas num instrumento inútil. A intensa pressão dos ventos feita pelos ônibus e caminhões desestabilizava o carro. As placas de alerta na rodovia inexistiam e não percebi sequer uma viatura de fiscalização durante as últimas 3 horas de viagem.

A escuridão dominava um cenário de trevas. Os automóveis disputavam espaço numa frenética corrida contra o tempo. Manobras perigosas e arriscadas como as tentativas frustradas de ultrapassagem eram praticadas com a certeza da impunidade que alimentava o ânimo desses viajantes. Ocorreram algumas colisões. Enxerguei caminhões virados e suas cargas arremessadas. Havia sangue. Morte. Todo tipo de sofrimento farejado no ar. Trechos exaustivamente conhecidos pelos anjos do asfalto.

Concentrei minha atenção na apagada faixa amarela que dividia as pistas. Um erro qualquer poderia ser fatal. O rádio desligado, todas as funções do cérebro concentradas e determinadas a não vacilar no meu automóvel popular, uma verdadeira armadilha sobre rodas fabricada sob os auspícios e descaso das autoridades.

A distância que mantinha do veículo da frente era suficiente para realizar qualquer manobra ou freada de emergência, porém, um caminhão Scania na minha traseira me pressionava. Dava sinais de luz, freava bruscamente, se aproximava demais.

Acelerei um pouco para me distanciar e acalmar o estressado condutor do vagalhão. Pelo retrovisor, percebi sua impaciência. Acelerou e logo estava a poucos centímetros de mim. Estávamos próximos de uma curva fechada. O mato muito alto impedia avistar os veículos que vinham no outro sentido, deixando toda a responsabilidade para a minha desgastada intuição.

Sem perceber, rápido como um dos raios no céu daquela trágica noite, um farol descontrolado em minha direção se dirigiu. Não havia resposta nem reflexo suficiente para escapar daquela inevitável colisão. O piscar de olhos retratou a imagem e não me deixou esquecer: os faróis de um enorme caminhão Mercedes-Benz me atingiram de frente, como um beijo da morte não desejada.

O Scania colado em meu para choque contribuiu e minha vida foi enlatada como uma sardinha. Estilhaços de vidros espalhados por todos os lados, escombros, ferro distorcido, óleo, gasolina, princípio de fogo. Senti na pele todo horror visto diariamente por milhares de brasileiros. Meu último pensamento, o último suspiro da minha consciência foi pensar na minha família, minha namorada, o filho que ainda não fiz, o sucesso da carreira que não tive tempo de alcançar, os lugares que não visitei e aqueles que nunca mais tornarão a ouvir o som dos meus passos.
Fatalidade? Não. Descaso com a vida humana: realidade nacional.

Um enorme clarão tomou conta da minha alma e não havia mais sofrimento.

Morri.

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